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Entre paixões e delírios latino-americanos: futebol, Copa do Mundo e política

Neste Mundial, o futebol não contribuiu para restaurar os laços que a política rompeu

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Messi comemora o tricampeonato da Argentina na Copa do Qatar - Anne-Christine Poujoulat/AFP
Rogelio Núñez

Pesquisador do Real Instituto Elcano e professor em várias universidades. Doutor em história contemporânea da América Latina pelo Instituto Universitario de Investigación Ortega y Gasset da Universidade Complutense de Madri

O futebol e a política são, sobretudo na América Latina, duas paixões que andam de mãos dadas, apesar de todos aqueles que afirmam que não se deve misturar as duas. A recente Copa do Mundo no Qatar foi apenas mais um exemplo desta simbiose político-futebolística na região latino-americana.

No entanto, nesta ocasião, o futebol não contribuiu para restaurar os laços que a política rompeu. Uma política que, como aponta Carlos Granés, autor de "Delírio Americano", fez com que "a América Latina tenha (já) voltado a se dividir em dois blocos incomunicáveis", tendência que o futebol tem reforçado.

A política, o futebol e sua derivada nacionalista são paixões que se retroalimentam. Um filme argentino ("O Segredo de Seus Olhos") conseguiu captar isso muito bem quando um dos personagens declarou, enfaticamente, que "Racing é uma paixão. Você percebe, Benjamín? O homem pode mudar tudo: seu rosto, sua casa, sua família, sua namorada, sua religião, seu Deus. Mas há uma coisa que ele não pode mudar, Benjamín... não pode mudar sua paixão".

O recém-terminado Mundial tem sido um bom espelho para contemplar a situação atual na América Latina nos âmbitos político, econômico-social e, inclusive, em relação a uma integração regional baseada no sentimento de latino-americanidade.

No terreno político, ficou em evidência que a "fissura" não é só patrimônio da Argentina: têm alcance regional, embora em cada país assuma diferentes rótulos relacionados ao sentimento "anti" (antifujimorista, antilulista/antibolsonarista, antipetista, antilopezobradorista, anticorreista...) que parece ser o único que, em ocasiões, une e articula as sociedades latino-americanas.

Uma fenda que não só torna a coexistência quase impossível, mas que acaba minando a identidade nacional comum vinculada aos sinais de coesão. O Brasil é um exemplo deste fenômeno. A seleção canarinho, que desde os tempos de Getúlio Vargas tem sido um nexo de unidade nacional ao acolher a diversidade étnica, religiosa e geográfica, não tem cumprido esse papel nesta ocasião.

A apropriação da camisa verde e amarela por parte de Bolsonaro, em um país fraturado entre bolsonaristas e antibolsonaristas, fez com que este símbolo de coesão se tornasse muito menos. Ademais, o fato de jogadores como Neymar apoiarem o presidente levou o setor adversário ao mandatário a tomar Richarlison, um declarado antibolsonarista, como estandarte.

Até o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, teve que sair e dizer o seguinte através de sua conta no Twitter: "Não temos que nos envergonhar de vestir a camisa verde e amarela".

No começo da Copa do Mundo, a ideia predominante era que serviria de bálsamo para que o atual e predominante mal-estar cidadão acumulado e a desafeição nascida da frustração de expectativas fossem colocados em segundo plano.

No entanto, os tempos políticos se aceleraram neste mês de Copa em que houve um golpe de Estado frustrado no Peru, uma crise diplomática entre Lima e Cidade do México, a ida às ruas de apoiadores e detratores de Andrés Manuel López Obrador e, a condenação de Cristina Kirchner e o subsequente terremoto político.

Fica claro que convém relativizar o efeito placebo de uma Copa, que certamente só é notável para o ganhador. Mas inclusive nesse caso é de curta duração, pois no dia seguinte às celebrações em massa, a dura situação (inflação, insegurança e incerteza generalizada) dá à população um banho de realidade.

A profunda crise que abate alguns países (Argentina) e o modesto papel de algumas seleções (Equador, Costa Rica e México) explicam a escassa incidência da Copa na realidade política nacional.

O Mundial foi também uma amostra de como os problemas internos dos países latino-americanos se convertem em um fardo para sua projeção internacional. O presidente equatoriano Guillermo Lasso não esteve presente na abertura do torneio, na partida entre Equador e Catar, devido às crises de segurança que a república andina atravessava, que acabava de decretar o estado de exceção em vários departamentos com altos índices de criminalidade.

E Alberto Fernández não acompanhou Emmanuel Macron no palco na grande final devido a uma mistura de razões que vão desde evitar o efeito mufa até não dar um sinal de frivolidade: viajar ao Qatar para ver uma partida de futebol, quando se está em meio a uma espiral inflacionária e a economia está à beira do colapso.

Finalmente, a Copa do Mundo evidenciou que, embora muito una os latino-americanos, não é suficiente, porque outras paixões deixam os vínculos teóricos comuns de escanteio. Alguns autores, como Carlos Malamud, apontam que o excesso de nacionalismo é uma das causas pelas quais a integração não avançou o suficiente na América Latina no último meio século.

E isso foi o que aconteceu durante a Copa do Mundo. Enquanto alguns mandatários como López Obrador se declararam favoráveis a Argentina por ser um país latino-americano, uma parte não insignificante dos latino-americanos, seja por esnobismo, clichês herdados sobre os argentinos ou velhas rivalidades, preferiu a vitória francesa.

Ao longo da história, o futebol demonstrou ser uma forte cola social, mas nesta Copa do Mundo ficou em evidência que sua ação perde força em contextos como o atual de polarização, onde prevalece o que separa os latino-americanos do que o que os une, tanto em escala regional quanto em relação às fraturas e rachaduras internas.

Estes são os ingredientes de um novo delírio latino-americano, que, ao apelar às paixões, em nada contribui à convivência, pois corrói os fundamentos das democracias.

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