Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

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Paulo Freire se infiltrou no Carnaval, olha o perigo!

Considerado inimigo por Bolsonaro, um perigo às escolas que precisa ser banido, o educador pernambucano voltará aos holofotes do Sambódromo de SP

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Em um comunicado interno dirigido às famílias de uma tradicional escola da classe A dos Jardins, em São Paulo, alguns meses atrás, a diretora usou uma citação conhecida de educadores: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”.

Ela não mencionou seu autor, mas um pai de aluno sabia que se tratava de Paulo Freire e ficou furioso. Com dedo em riste, bradou a um dos auxiliares da diretora: “Ela é comunista!”

Considerado inimigo por Bolsonaro e seus apoiadores, um perigo às escolas que precisa ser banido, o educador pernambucano voltará aos holofotes do Sambódromo de São Paulo na madrugada de sábado para domingo, no desfile das campeãs.

Um dos mais respeitados nomes da educação no mundo, Freire (1921-1997) foi lembrado em um carro alegórico da Águia de Ouro, vencedora do Carnaval paulistano com o samba-enredo “O Poder do Saber – Se Saber é Poder... Quem Sabe Faz a Hora, Não Espera Acontecer”.

Com esse prêmio e o repeteco na avenida, aumentam as chances de que o público perceba e entenda a homenagem, que nem foi mencionada na transmissão oficial dos desfiles na Globo.

Entre uma série de referências ao saber, da descoberta do fogo a Leonardo da Vinci, dos curandeiros a Santos Dumont, Paulo Freire surge no carro Magia do Saber  —Ao Mestre com Carinho.

Está representado por um boneco gigante de chapéu, óculos, barba e bigode, como a sua figura se tornou conhecida, segurando um livro em que se lê uma de suas frases famosas: “Não se pode falar de educação sem amor”. E, na página ao lado, “Viva Paulo Freire!”

Para perceber quão descabido é o ódio que sua obra incita nestes tempos de intolerância, basta pensar sobre essas duas citações, a da diretora do colégio dos Jardins e a da Águia de Ouro, que definem pilares de seu pensamento.

Freire defendia que a educação deve partir da realidade dos alunos. Seu método de alfabetização, por exemplo, baseia-se em palavras do cotidiano do estudante, que tanto aprende a lê-las e a escrevê-las quanto a refletir sobre o significado delas.

Pois então, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. O pai que se assustou com a citação talvez não saiba que tantas das metodologias inovadoras adotadas por essa e outras escolas das classes sociais mais altas se baseiam nesse princípio.

Afinal, o que é protagonismo do aluno? Ou o descolado “student-centred learning”, aprendizado centrado no aluno? O que são as habilidades socioemocionais como leitura crítica e capacidade de análise?

Essa história moderninha de educação do século 21 estava em Paulo Freire desde os anos 1960. Foi já naquela época que ele entendeu algo que agora mobiliza até as mais conservadoras instituições de ensino, que a escola não pode ser burocrática, lugar de “educação bancária”, como dizia, em que o professor ensina e os alunos aprendem passivamente.

O processo é de trocas, de valorização de todos os saberes em um ambiente de comunidade. As famílias devem ser ouvidas, participar das decisões, em uma relação democrática e respeitosa. Afinal, defendia o educador, que em 1993 foi indicado ao prêmio Nobel da Paz, “não se pode falar de educação sem amor”.

O Paulo Freire da Águia de Ouro, ainda que perdido entre alegorias, ajuda a dar cores a essa zona cinzenta do debate atual. Os espectadores podem se interessar por sua trajetória, narrada em livros como “O Educador”, de Sérgio Haddad, que foi lançado recentemente e é bem escrito e equilibrado, e até pelas próprias obras de Freire.

Desse modo, saberão, por exemplo, que ele nunca foi comunista. Baseou-se em Marx, sim, assim como em diversos outros teóricos, inclusive em católicos anticomunistas.

Filiou-se ao PT, é verdade, e foi secretário de educação da prefeitura de Luiza Erundina, em São Paulo. Tinha então mais de 60 anos, acumulava prêmios em universidades de diversos países e sonhava com a melhoria das escolas públicas.

Se essa é a razão para considerá-lo um inimigo, seria melhor o desfile das campeãs trazer de volta, além da Águia de Ouro, o samba-enredo da Leandro de Itaquera de 1999, todo ele dedicado a Paulo Freire, que cantava assim: “Acorda meu Brasil / Desperta pra felicidade / Eu quero amor / Eu quero amar em liberdade”.

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