Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

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Escolas cobram conteúdo de alunos como se a pandemia não existisse

Ninguém assume com todas as letras, mas o que se espera, no fundo, é que, pelamordedeus, os alunos colem nas provas, peçam para alguém responder por eles

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Se 2020 já parecia ter dado toda a sua cota de bizarrice, o fim do ano letivo é a cereja do bolo nesse mundo surreal da pandemia. Depois de permanecerem fechadas praticamente o ano inteiro no Brasil, escolas particulares cobram dos estudantes notas e engajamento nas atividades como se o mundo não estivesse de pernas pro ar.

De crianças em fase de alfabetização a adolescentes no auge do alvoroço hormonal, estão todos há oito meses trancados em casa, ligados a aulas on-line, a maioria chatíssima. Isso quando já não desistiram, esgotados com um formato que se provou ineficiente na educação básica.

O impacto emocional desse confinamento sem fim é assustador e fica cada vez mais claro em pesquisas e em relatos de profissionais da saúde e de famílias. Crianças e jovens estão ansiosos, tristes, deprimidos. Em casos mais graves e não tão raros, têm síndrome do pânico e tendências suicidas.

Mas, claro, vamos cobrar deles todas as fórmulas decorebas de matemática, todos os poetas secundários do barroco e a conjugação do pretérito imperfeito do subjuntivo.

Sala de aula do colégio particular na zona sul de São Paulo - Bruno Santos/ Folhapress

E aquela conversa fofa do início da pandemia de que as escolas teriam que investir mais do que nunca em acolhimento emocional, empatia, valorização de habilidades socioemocionais? Tudo vira um blablablá quando o encerramento do ano letivo se aproxima e o boletim com notas baixas chega às mãos dos gestores. Surge, então, a inacreditável pergunta: “Mas como vamos passar esse aluno de ano?”

O Conselho Nacional de Educação aprovou um parecer no qual alerta para a incoerência e o impacto emocional de se reprovar um estudante neste ano tão atípico, além do risco da explosão da evasão escolar, e recomenda que a aprovação seja automática no Brasil, citando países europeus que criaram leis nesse sentido.

E olha que o tempo de fechamento das instituições de ensino raramente passou de dois meses na Europa, enquanto nós, brasileiros, podemos “brindar” em qualquer boteco aberto o recorde mundial de oito meses sem escola.

Se na rede pública sabe-se que não há como fugir da aprovação automática, especialmente considerando que parte dos alunos não teve acesso às aulas remotas por falta de estrutura, na particular a equação é outra.

Além do fato de que os estudantes têm computador e internet para acompanhar as aulas, a conta envolve uma relação de consumo escolas/pais que pagam mensalidade. A aprovação automática poderia, nesse caso, dar uma ideia que a empresa não entregou o produto aos seus clientes em um ano em que foi especialmente difícil dar conta dos boletos.

E aí começam as cobranças. Em um tempo transitório entre o remoto e o presencial, em vez de aproveitar ao máximo a possibilidade de acolher o aluno na escola, opta-se por dar a ele recuperação a distância, valendo nota, porque consegue-se assim alguns pontinhos a mais no boletim.

Ninguém assume com todas as letras, mas o que se espera, no fundo, é que, pelamordedeus, os alunos colem nas provas, peçam para alguém responder por eles, sei lá, é preciso arrumar um jeito de justificar a aprovação.

Gente, que escola é essa a que estamos submetendo nossas crianças e adolescentes?

Uma pesquisa do Instituto Crescer feita em setembro com 528 docentes de colégios públicos e privados de todas as regiões do Brasil mostra que mais da metade deles (52%) manteve as atividades previstas para o ensino presencial ou, no máximo, fez pequenas adaptações para o formato digital.

É semelhante o número dos que não sabem avaliar se os estudantes estão aprendendo alguma coisa ou já admitem ter tido pouco sucesso no aprendizado dos alunos com o ensino remoto (54%).

Os professores, claro, se sentem frustrados com essa situação: 56% se desiludiram porque, por mais que tenham se empenhado, acreditam que poucos alunos tenham evoluído, e 16% constataram que é muito difícil planejar atividades eficientes a distância. Esgotados, são então submetidos à pressão para que seus alunos “entreguem” resultados e possam “fechar” o ano na média de nota exigida.

Claro que as escolas sofreram muito com o fechamento, com as tantas indefinições, com as dificuldades financeiras. E, em boa parte, se esforçaram para se adaptar, para atender às demandas das famílias e para sobreviver no meio do turbilhão.

Mas pergunte a seus filhos e a outras crianças e jovens de famílias conhecidas quantas vezes eles tiveram oportunidade de conversar nas aulas sobre a experiência no confinamento, de debater o que cada um fez de interessante, se conseguiram ajudar outras pessoas próximas ou desconhecidas, como superaram as dificuldades em todos os sentidos, e não só para estudar, se sentem medo de se contaminar com o vírus, qual é a sensação de começar a sair de casa novamente.

Será que discutiram com os professores e com a turma quanto a pandemia revelou de desigualdade no país, como a realidade da escola particular é diferente da pública, o alto número de estudantes que estão sem nenhum acesso às aulas porque não têm internet e computador?

Difícil dar conta disso tudo quando se tem que seguir apostilas e livros didáticos elaborados em um mundo sem pandemia. E, infelizmente, não parece ter sido a minoria que seguiu a trilha do velho normal.

Portanto, se você gosta da escola do seu filho, mas se decepcionou com o caminho escolhido neste ano, é hora de arregaçar as mangas e de se colocar na linha de frente do debate sobre as mudanças.
Não está em jogo o que pagamos de mensalidade, mas o futuro dos nossos filhos.

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