Leandro Narloch

Leandro Narloch é jornalista e autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, entre outros.

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Leandro Narloch

Esquerda está perdendo a capacidade de conviver com a diferença

Quando não há questionamento sistematizado e a diversidade de ideias, o conhecimento não avança

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O escritor Ricardo Lísias decidiu na semana passada deixar de concorrer ao prêmio São Paulo de Literatura. O motivo, segundo ele, era a presença de “figuras da extrema direita brasileira” entre os curadores: o filósofo Eduardo Wolf e o escritor Martim Vasques da Cunha.

No Twitter, Lísias disse querer “distância do lixo”; também afirmou que pensadores como Friedrich Hayek, Nobel de Economia de 1974, “são ideólogos extremistas”, “abaixo do nível”.

Cunha e Wolf são entendedores do pensamento conservador clássico, mas estão bem distantes do bolsonarismo ou da extrema direita. Defendem direitos e liberdades individuais talvez até com mais convicção que Ricardo Lísias.

À parte a jogada de marketing para chamar atenção a seu livro, Lísias é um exemplo da crescente intolerância da esquerda contra opiniões divergentes.

Os casos de cancelamentos e histerias são exemplos disso, mas também há estatísticas diagnosticando o fenômeno, principalmente em universidades. Eis algumas delas:

  • Uma pesquisa da Universidade da Carolina do Norte descobriu que 18% dos estudantes que se consideram “muito de esquerda” defendem que a universidade cancele palestras de “republicanos conservadores”, enquanto menos da metade (8%) dos “muito conservadores” defenderiam a ação contra um palestrante “democrata de esquerda”
  • 68% dos estudantes de direita se autocensuram, temendo consequências de suas opiniões políticas mesmo quando elas são relevantes ao tema da aula, enquanto 24% dos estudantes de esquerda adotam esse comportamento, de acordo com o mesmo levantamento
  • Entre estudantes de ciências sociais da Universidade de Frankfurt, só 36% consideram aceitável a contratação de um professor que acredita haver diferenças biológicas entre capacidades de homens e mulheres; só 32% aceitariam um professor para quem as visões do islã são incompatíveis com valores ocidentais
  • 7% dos alunos de direita pediriam para a universidade cancelar a palestra de um jornalista da MSNBC (emissora de esquerda). Já 18% dos alunos de esquerda tomariam a atitude em relação a um jornalista da Fox News (emissora de direita), segundo levantamento da Fire (Foundation for Individual Rights in Education)

Um argumento frequente contra a liberdade de opinião divergente é a falácia da ladeira escorregadia, muito usada por síndicos de prédios: “Se deixar, vai virar bagunça”. Lísias tropeça nessa falácia ao dizer, no Twitter, “começa tolerando conservador que toma banho e termina com genocídio”.

Na verdade, é o contrário. O resultado da falta de divergência é a pobreza do debate. Problemas complexos exigem debate livre e aberto, exigem que a roda de conjecturas e refutações da ciência funcione livre de travas.

Sem serem expostos a opiniões divergentes, estudantes e intelectuais não se atualizam nem refinam argumentos. Mergulham na bolha de opiniões afins e perdem a capacidade de dialogar com o resto da sociedade. Quando não há questionamento sistematizado e a diversidade de ideias, o conhecimento não avança: restam visões chapadas e estereótipos.

Um exemplo do empobrecimento do debate apareceu neste fim de semana. O jornalista Reinaldo José Lopes, autor do livro “1499”, desfiou aqui na Folha críticas e ressentimentos a meus livros e artigos. Segundo ele, o “narlochismo é uma linha auxiliar do bolsolavismo”.

Achei a definição esquisita, pois desde 2018 afirmo que “é melhor Jair se decepcionando” (como fiz em entrevista a uma rádio logo após a eleição). E de Olavo de Carvalho já ganhei apelidos nada lisonjeiros (mas bem divertidos).

Reinaldo parece desconhecer a diferença entre liberais, reacionários bolsonaristas, liberais-conservadores e o meu caso: um libertário favorável à livre imigração, à privatização de quase tudo, à legalização das drogas (principalmente as coloridas) e de todos os tipos de casamento entre adultos. Chamar isso de “bolsolavista” revela a superficialidade do debate atual.

Nesse ambiente inquisitorial, qualquer tentativa de discussão é vista como profana. Para Reinaldo José Lopes, eu retiro informações do contexto e deveria pedir “mea-culpa” por ter “envenenado o debate público”.

Na verdade, boa parte do trabalho dos meus livros consistiu justamente em colocar informações no contexto.

O Quilombo dos Palmares não era uma sociedade igualitária, como retrataram historiadores socialistas do século 20, mas um povoado do século 17, sem noções de igualdade ou direitos individuais.

Os índios de 1500 se matavam entre si porque não se enxergavam como pertencentes à mesma etnia ou à mesma identidade. Dez anos depois de terem sido publicadas, essas ideias já soam como óbvias —só os mais ressentidos as consideram venenosas.

Outro resultado da falta de apreço à divergência é a pessoa, tão preocupada em apedrejar, esquecer o básico do pensamento lógico. Tenta negar dados do passado com previsões sobre o futuro.

Sobre a controvérsia dos meus artigos recentes sobre a queda histórica das mortes causadas pelo clima, Reinaldo diz que eu não incluí na conta “as mortes extras por malária, as vidas que serão ceifadas em guerras civis impulsionadas por escassez hídrica".

Mas é claro que não incluí na conta “as vidas que serão ceifadas”, pois me referi ao passado, ao que vivemos nas últimas décadas. Não se pode incluir dados do futuro numa estatística do passado —se não fica parecendo loucura!

Fico imaginando conversas do jornalista. Alguém diz “o Flamengo foi campeão brasileiro em 2020” e Reinaldo José Lopes responde: “Mentira! O Palmeiras vai ser campeão em 2021!”. Não dá pra negar fatos do passado com previsões sobre o futuro.

Reinaldo cita a malária e as guerras civis. Esqueceu-se de informar que as mortes por malária caíram 34% desde 2004. Não houvesse mudança climática, a queda seria maior? Talvez sim, mas o jornalista não chega a esse nível de profundidade.

Sobre conflitos causados pelo aquecimento global, uma revisão de estudos publicada na Nature em 2019 concluiu que “relações entre clima e conflito ainda permanecem incertas”. Apesar da incerteza, vamos supor que todas, que 100% das mortes em conflitos organizados dos últimos anos tenham sido causadas pelo clima.

Ainda assim haveria uma enorme queda na taxa de mortes por fenômenos naturais, que ficaria em cerca de 1 morte a cada 100 mil indivíduos, mantendo a validade da minha afirmação.

O jornalista diz ainda que repito “histórias sobre silvícolas malvados vendendo macaquinhos para turistas na beira da estrada”. Mais uma vez, a crítica parece meio lunática, pois nunca falei nem repeti nada disso.

Ao criticar alguém, é importante mirar afirmações reais, utilizando dados reais. Se não, fica parecendo loucura —ou frustração.

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