Leandro Narloch

Leandro Narloch é jornalista e autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, entre outros.

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A sombra da doença viral mais letal da história

Varíola dos macacos abre um novo capítulo de uma das mais dramáticas histórias da medicina e da inovação

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Um parente da doença viral mais mortal da história circula entre nós —e é notável como ligamos pouco para ele.

As notícias sobre a varíola dos macacos têm ficado no pé dos sites de notícia; muita gente mal conhece a nova doença ou sabe que um vírus da mesma família matou 300 milhões de pessoas só no século 20.

Há 200 ou 300 anos, a notícia de um novo tipo de varíola seria motivo de pânico e de quarentenas.

Amostras com testes positivos para varíola dos macacos - Dado Ruvic/Reuters

No Japão e na Inglaterra, a varíola matava tantas crianças que muitas famílias só davam nome aos filhos depois que eles sobrevivessem à doença.

A varíola causou dois terços dos casos de cegueira do século 17. Luís 14, Luís 15, Pedro 2º da Rússia e o imperador José 1º da Áustria morreram tomados pelas pústulas da varíola. Alguns apontam que ela foi a causa de 90% das mortes de índios após o descobrimento da América.

Depois da malária e da tuberculose, nenhuma doença infecciosa matou tanto.

Essa história começou a mudar no começo do século 18, quando uma inglesa chamada Mary Wortley Montagu apresentou à sociedade londrina um método de prevenção um tanto exótico.

Lady Mary abria pequenas feridas em crianças saudáveis e inseria ali o pus extraído das bolhas de portadores de varíola leve. Jurava que isso fazia as crianças ficarem imunes.

Mulher do embaixador britânico no Império Otomano, Mary tinha aprendido o "método do enxerto" quando morou em Istambul. Conheceu ali um grupo de mulheres idosas que fazia da operação um negócio.

"Eles organizam festas com esse propósito, e quando as pessoas são reunidas (geralmente quinze ou dezesseis juntas) a velha vem com uma casca de noz cheia do material e pergunta qual veia você gostaria de abrir", contou Mary a uma amiga em 1717.

Ao popularizar a prática em Londres, Mary foi ridicularizada por médicos da cidade. William Wagstaffe, professor e membro da Academia Real de Medicina, disse que o enxerto de pus era coisa de "mulheres ignorantes e de analfabetos". Outros o consideraram um curandeirismo nefasto e demoníaco.

A prática, na verdade, seguia o princípio da inoculação —expor-se a vírus leves ou enfraquecidos para ativar o sistema imunológico. Muito antes de cientistas entenderem microrganismos e anticorpos, as mães descobriram por tentativa e erro como proteger os filhos.

Décadas depois de Lady Mary, o médico Edward Jenner soube que pessoas que ordenhavam vacas —e contraíam a varíola bovina, causada pelo vírus vaccinia— eram imunes à varíola humana. Surgiu daí a inspiração para criar as primeiras "vacinas".

A luta contra a varíola foi uma típica história de inovação: uma conquista humana que ocorreu por tentativa e erro, pelo "learning by doing", de forma descentralizada e imprevisível, muitas vezes sofrendo resistência de autoridades.

Se hoje conseguimos erradicar a varíola e ficamos relativamente tranquilos diante de uma nova doença da mesma família, é porque podemos contar com as experiências e o conhecimento acumulado por esses brilhantes inovadores

Erramos: o texto foi alterado

A quarentena de 1665 citada em versão inicial do texto foi provocada pela peste bubônica, não pela varíola
 

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