Leandro Narloch

Leandro Narloch é jornalista e autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, entre outros.

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Por que a Amazon ainda insiste que o termo criado-mudo é racista?

Nas religiões seculares do século 21, sinalizar comprometimento importa mais que falar a verdade

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Sempre que alguém aparece com uma paranoia linguística —como a de que é racismo falar "denegrir" ou "criado-mudo", ou que "formandes" é um termo mais inclusivo que "formandos"— eu e outros comentaristas corremos furiosos despejar refutações.

O esforço é quase sempre em vão. Presumimos que os patrulheiros da linguagem estão preocupados com a verdade, com a precisão de informações e histórias. Mas nesse tipo de debate a verdade tem valido pouco: o que importa é a sinalização de virtude.

Veja o caso de "criado-mudo". É menos absurdo chamar de racista quem vê racismo nessa palavra (pois a pessoa associa automaticamente "criados" a "negros") do que quem a utiliza de forma inocente.

Título: O guia 'Expressões racistas do quotidiano' está na minha mesa de cabeceira. Na ilustração em linhas pretas, há uma mesa de cabeceira com duas gavetas e um livro preto em cima dela.
Ilustração sobre o uso do termo criado-mudo - Luiza Pannunzio

Meses atrás, depois de uma torrente de refutações, até mesmo a Lupa, uma agência de checagem de fatos, voltou atrás da informação de que o termo tem alguma relação com a escravidão.

No entanto, se hoje você procurar "criado-mudo" no site da Amazon Brasil, receberá de graça uma lição de moral: "Criado-mudo, não. O termo correto é mesa de cabeceira. Criado-mudo é um termo com conotação racista (...)".

Se em cinco minutos de pesquisa é possível esclarecer essa lenda urbana, por que a Amazon insiste em transmitir a fake news a seus clientes?

Porque se ater à verdade é chato; legal mesmo é sinalizar comprometimento aos valores abstratos do momento. Verdade ou não, o alerta cumpre o objetivo de fazer a Amazon parecer pura, moralmente sofisticada, antenada às tendências.

O economista Cameron Harwick descreveu muito bem esse comportamento em um artigo da Quillette:

"Imagine uma comunidade na qual afirmações divergentes são julgadas não com base em sua precisão ou coerência, mas pelo quanto refletem um valor sagrado. Além disso, há algum tipo de punição para aqueles que se encontram no lado perdedor da competição. O resultado é que o valor sagrado em questão acaba por sobrepujar todos os outros valores, como utilidade, verdade, coerência ou humanidade."

Harwick chama o fenômeno de piety contest, "campeonato de devoção". A pessoa concorre com as outras não para ser vista como racional e equilibrada, mas a mais pura, a que chora mais lágrimas de sangue diante das crueldades da semana.

O campeonato de devoção esculhamba toda a busca por soluções de problemas sociais. Torna o campo de debate um campo minado: com medo de ficar em último lugar, as pessoas impõem a si próprias censuras de pensamento.

Ganham o páreo as ideias que exalam mais pureza, as teorias mais paranoicas (como as dos patrulheiros das palavras). E não necessariamente os diagnósticos e as propostas mais eficazes.

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