Leão Serva

Jornalista, foi coordenador de imprensa na Prefeitura de São Paulo (2005-2009). É coautor de "Como Viver em São Paulo sem Carro".

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Descrição de chapéu

Por que pedestre é rastaquera, Gilmar Mendes?

Ao confundir andar a pé com inferioridade, o ministro do STF revela supremo preconceito

Pedestres caminham pela região central de São Paulo
Pedestres caminham pela região central de São Paulo - Keiny Andrade - 20.jan.2018/Folhapress

O ministro Gilmar Mendes reclama da qualidade de críticas e polêmicas em torno de temas envolvendo o Supremo. Ele acha que elas são rasteiras, pobres de espírito. Acho que boa parte da nação até concorda com ele. Mas ao definir o sentimento, em sua entrevista à Folha, ele classificou o debate como pedestre, rastaquera.

Perdeu a chance de ficar quieto. Ao confundir pedestres com alguma forma de desqualificação, o ministro não se deu conta da gravidade do preconceito contido em sua expressão: confundir o pedestre com má qualidade ou baixeza é uma prova da suprema desigualdade social do país, no qual tradicionalmente os donos do carro têm poder e dinheiro e ignoram o direito dos mais pobres a pé nas calçadas.

Rastaquera, informa o dicionário, é o indivíduo que pratica gastos luxuosos e ostentações, pessoa de meios de subsistência suspeitos e que ostenta luxo exagerado e de mau gosto. Não tem nada com pedestre e talvez tenha muito com os supremos brasileiros acostumados a luxos pagos com dinheiro público.

O ministro certamente não anda a pé, tem carro oficial. Mas deveria pensar no sentido das palavras que usa. Os pedestres pagam os impostos que sustentam seu salário e seus deslocamentos. Os praticantes da chamada mobilidade ativa são a maioria absoluta dos brasileiros, principalmente por necessidade, mas também por opção.

Ministro Gilmar Mendes em cerimônia em Brasília
Ministro Gilmar Mendes em cerimônia em Brasília - Pedro Ladeira - 05.fev.2018/Folhapress

As palavras têm história e raiz, elas contêm em si sentidos profundos. A palavra judiação remete à história das perseguições aos judeus. Quando digo mulato, me refiro a mulas, animais de carga, como os escravos eram considerados por seus donos; a referência à cor da pele carrega junto um antigo preconceito racial e social.

Pedestres são o centro da atenção em cidades mais democráticas como Berlim, Paris e Londres. Em Nova York, como diz o jornalista Gilberto Dimenstein, os ricos andam nas calçadas e os pobres (de espírito) se deslocam de carro, em imensos congestionamentos.

Não é só no Brasil que os supremos homens de elite relegam os pedestres a uma condição inferior. Há muitos outros países em que andar a pé resulta em descuido e maus tratos, em calçadas abandonadas. São países de Terceiro Mundo, sociedades de grande diferença entre ricos e pobres, em que a elite anda de carro, buzinando para que os pedestres saiam da frente.

Isso tem mudado no Brasil real, aqui embaixo na planície, embora se mantenha no Planalto. São Paulo, a esta altura do século 21, tem um dos melhores trânsitos do país para os carros, mas suas calçadas ainda são podres como as do tempo do imperador, quando se formaram as ideias de Gilmar Mendes. Por isso mesmo, foi promulgado recentemente o Estatuto do Pedestre, para tornar explícitos os seus direitos como cidadãos que merecem respeito enquanto se locomovem a pé.

O objetivo da lei, de junho de 2017, proposta pelo vereador Police Neto (PSD) e sancionada pelo prefeito João Doria (PSDB), é igualar a qualidade do cuidado público com a locomoção dos 70% da população que são bípedes, andam a pé, com os 30% que se movem com quatro rodas (eu poderia dizer quadrúpedes, mas acho que esses são apenas os rastaqueras que ostentam poder de dentro de seus carros oficiais, não é ministro Gilmar Mendes?).

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