Leão Serva

Jornalista, foi coordenador de imprensa na Prefeitura de São Paulo (2005-2009). É coautor de "Como Viver em São Paulo sem Carro".

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O pior do Brasil se enfrenta no Paissandu

Pais usam filhos, expostos ao relento, sujeira e riscos, para chantagear poder público

Qualquer pessoa, que não seja muito obtusa por natureza ou cega por opção ideológica, sabe que no Largo do Paissandu  está acontecendo algo moralmente indefensável. Algumas dezenas de pais chantageiam o poder público usando como reféns os filhos menores, expostos ao relento, a frio e calor extremos, sujeira e aos riscos de várias formas de ameaça, alegadamente para obter uma casa ou uma forma de renda paga com dinheiro oficial.

Se o pior do Brasil são os brasileiros, certamente o que há de pior está entre os protagonistas da farsa em curso na praça ao centro de São Paulo. O enredo ali começou com uma tragédia: o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, cerca de 40 dias atrás, que deixou um número registrado de sete mortos e 170 famílias desabrigadas. E desde então foi se construindo uma disputa que já tirou mais uma vida, a de um bebê morto em trabalho de parto na quarta-feira, 6 de junho.

O embate não é o que parece. Não é por teto, como dizem uns, nem por soluções jurídicas, como alegam outros. Ali se digladiam várias “narrativas”, como diz o jargão contemporâneo. Enquanto isso, as crianças sofrem.

Na praça, oportunistas buscam ganhar um naco dos benefícios públicos devidos às vítimas do acidente; movimentos de sem teto tentam enterrar sob o entulho do incêndio e as barracas do Paissandu seus podres expostos no desabamento; Prefeitura, Ministério Público e Conselho Tutelar, o chamado “Poder Público”, paralisam-se em um torneio de interpretações jurídicas enquanto mostram que todos os impostos pagos pela maior cidade do país são insuficientes para garantir uma decisão qualquer, menos ainda de bom senso.

A imprensa cobre tudo com um olhar impregnado do que velhos comunistas chamavam de “culpa pequeno-burguesa”: reportagens com textos naturalistas, ao estilo de romances do século 19, carregados de emoção, em que a versão das vítimas se associa necessariamente com o “bem”. 

Homem exibe no celular foto abraçado com mulher
Rafael Alves, 32, mostra foto com a esposa, Jackeline da Silva Moraes, 25 - Thiago Amâncio/Folhapress

No entanto, como diria o personagem Bronco, criação do finado humorista Ronald Golias, no Paissandu “é tudo tão estranho”! Até mesmo o enredo da tragédia do bebê morto não tem começo e meio coerentes com o fim. Poucos dias antes do parto, nos documentos em que reivindica os direitos de morador do edifício Wilton Paes de Almeida, o pai, Rafael Alves, disse ser solteiro e ter apenas um filho homem, de 11 anos. Depois da morte da menina, contou à Folha que morava no prédio com a esposa, Jaqueline, grávida da “primeira filha”. O menino não aparece. Segundo sua história, na noite do acidente, dormiam na casa da sogra.

Jaqueline não foi registrada no censo dos moradores do prédio, em março, e nem se cadastrou nos dias seguintes ao desabamento. Ela consta no sistema público de saúde como moradora da zona sul da cidade, onde fez o acompanhamento pré-natal a 30km, cerca de 2 horas em transporte público, do centro.

Há coisas incongruentes no enredo do Paissandu. No dia em que o edifício caiu, seus moradores contaram que pagavam taxas para o Movimento Social de Luta por Moradia (MSLM), que controlava a invasão. Os números variam entre R$ 300 e R$ 500. Os moradores cadastrados foram encaminhados para receber bolsa aluguel da Prefeitura. 

Se os ocupantes da praça exigem bolsa aluguel da Prefeitura como condição para sair do acampamento, por que ao menos 26 famílias de vítimas reconhecidas, que já receberam R$ 1.200 no mês passado e R$ 400 este mês, recusam-se a deixar o local? 

Uma semana depois da queda do prédio, como muitas famílias se negassem a sair com as crianças da praça, como estava estampado em toda a imprensa, a secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura pediu a intervenção do Ministério Público, que é legalmente o curador da criança e do adolescente. “Diante dessa notória situação de grave risco envolvendo crianças e adolescentes, e da inexplicável resistência de seus genitores/responsáveis em se retirar do local, encaminhamos o presente para a tomada das providências judiciais cabíveis”, requisitava o ofício de duas páginas assinado pela secretária Eloísa Arruda, ex-procuradora de Justiça.

O Ministério Público entendeu que a secretária pedia que as crianças fossem retiradas de seus pais e levadas a abrigos infantis, uma medida extrema, que resulta numa suspensão do direito de paternidade. Por isso, enviou à Vara da Infância e da Juventude da Justiça Estadual, no dia 17 de maio (dez dias depois), uma Ação Civil Pública em que descreve inúmeras mazelas da Administração Pública e pede que a Justiça determine, entre outras coisas, a “adequação do serviço de abordagem de rua na Região da Sé” e “apresente, no prazo máximo de seis meses, atos normativos e ações concretas, no âmbito da administração municipal” para tornar a ação social mais eficiente. É o que pede o texto assinado pelos promotores Eduardo Dias, Luciana Bergamo e Luís Gustavo Castoldi. Seis meses...

A resposta do Ministério Público é desproporcional: diante de um pedido curto de intervenção urgente para resolver especificamente a questão das crianças no Paissandu, produziu uma peça política, longa e grandiloquente, que reivindica solução de diversos problemas da criança e do adolescente em situação vulnerável no centro de São Paulo. Deu a pleito específico uma resposta geral que não poderia ser resolvida em curto prazo.

Em conversa com o promotor Eduardo Dias, na última sexta, disse a ele que não reconheci no ofício da Prefeitura o pedido da medida extrema, com que ele justificou a reação do MP. Ele me respondeu: “Prezado, não sei ao certo qual grau de conhecimento que Vossa Senhoria tem do direito ou da estrutura do MP. Todavia, o pedido foi dirigido à PJ (Promotoria de Justiça), que tem como atribuição, como lhe disse, a atuação em face do poder familiar”.

Pedi a opinião de advogados, inclusive de um membro aposentado do Ministério Público. Concordaram que o ofício da Prefeitura é uma provocação aberta para que o MP agisse no caso do Paissandu, naquele início de maio, sem referência à separação de pais e filhos.

O promotor Dias alegou que a Justiça reconheceu sua interpretação ao conceder a liminar pedida na Ação, já em meados do mês. É preciso considerar que a Juíza se baseou na peça do MP, que contém a interpretação exagerada. 

Ao conceder a decisão, a Justiça contribuiu para adiar por pelo menos seis meses o drama das crianças no Paissandu. Tanto que o pedido da Prefeitura foi feito em 7 de maio e até hoje, 11 de junho, elas estão lá expostas ao pior da sociedade brasileira.

Durante a conversa, perguntei ao promotor o que um cidadão poderia fazer para exigir rapidez diante da paralisia do Poder Público, que eterniza um crime contra aquelas crianças. Ele disse que qualquer pessoa pode representar ao Ministério Público para pedir uma ação contra algo que considere irregular.

E contou que, após o episódio em que um artista performático teve o corpo nu tocado por uma criança, em setembro de 2017, no Museu de Arte Moderna (MAM), foram encaminhados a ele dezenas de representações, com milhares de assinaturas, pedindo do fechamento do Museu à perda da guarda da criança pela mãe.

Desta vez, nenhuma reclamação da sociedade civil foi encaminhada aos promotores. Aqueles milhares de moralistas não se emocionaram agora, o que revela um retrato ainda mais grave do país. De fato, o pior do Brasil está no Paissandu.

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