Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Lúcia Guimarães

Decisão impulsiva de matar general iraniano torna o mundo, a curto prazo, mais perigoso

Donald Trump finalmente provocou uma crise cujo resultado não previu

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Um conhecido apresentador da rádio pública de Nova York abriu seu programa na terça-feira (7) com a voz rouca. “É isso aí, pessoal, peguei a gripe de inverno, mas, por outro lado, o mundo pegou pneumonia.” Ele se referia ao assassinato de Qassim Suleimani, o segundo homem mais poderoso do Irã.

Desta vez, uma operação militar americana contra um adversário não contou com um período de graça. Pouco adiantou o secretário de Estado, Mike Pompeo, passar por seis programas políticos em uma só manhã, anunciando que o mundo estava mais seguro com a morte do sanguinário líder militar iraniano.

Vazamentos sobre o processo decisório de Donald Trump, que preferiu antecipar a operação para membros de seu clube de golfe na Flórida e manter o Congresso e países aliados no escuro, deixaram claro que não havia ameaça iminente para justificar o primeiro assassinato de um alto oficial de um país estrangeiro desde que os americanos abateram o avião do almirante Isoroku Yamamoto, o arquiteto do ataque a Pearl Harbor, em abril de 1943.

O presidente americano, Donald Trump, conversa com repórteres na Casa Branca
O presidente americano, Donald Trump, conversa com repórteres na Casa Branca - Jonathan Ernst/Reuters

Um recado sobre a dissonância ecoou claro quando o âncora Tucker Carlson, da rede apelidada de semi-estatal Fox News,  espinafrou, sem citar Trump, o establishment de Washington obcecado com a ideia de mudar o regime iraniano e perguntou: Quem se beneficia com isto? 

A decisão impulsiva de matar o oficial que já esteve na mira das forças americanas inúmeras vezes e escapou porque o cálculo do custo da operação trazia sobriedade para mentes mais equilibradas torna o mundo, a curto prazo, mais perigoso. 

Não é só o cenário inevitável de o teatro militar iraquiano que se torna terreno fértil para uma guerra por procuração entre americanos e iranianos. O Estado Islâmico foi combatido inicialmente no Iraque sob a liderança de Qassim Suleimani, que começou a armar os curdos contra o grupo em 2014. No fim de semana passado, a coalizão de combate ao Estado Islâmico no Iraque, liderada pelos Estados Unidos, suspendeu operações de combate ao grupo para se concentrar na proteção de forças americanas e britânicas contra eventuais ataques orquestrados pelo Irã.

Mesmo os defensores de Donald Trump nunca o acusaram de conhecimento ou temperança em questões de política externa. Já candidato a presidente, Trump, confuso, respondeu a uma pergunta sobre a Quds, a Guarda Revolucionária Iraniana comandada por Suleimani com um comentário sobre os curdos.

Este é o momento que republicanos empurrados para o exílio pela trumpificação de seu partido temiam. O homem que não consegue ler relatórios de inteligência ou segurança nacional, o empresário que trata política externa como uma série de transações imobiliárias finalmente provocou uma crise que não tem planos definidos para atravessar e cujo resultado não previu.

O norte-coreano Kim Jong-un, diante do assassinato de Suleimani, há de se abraçar ao sonho de governar um poder nuclear com maior determinação. Em Moscou, Vladimir Putin, cujo apoio incondicional ao genocida Bashar al-Assad reflete seu temor de aventuras militares ocidentais para mudar regimes, não há de se importar com uma leve alta do petróleo, mas, especialmente, há de comemorar o enfraquecimento da presença americana no Oriente Médio. É o mesmo Putin que interferiu ativamente na eleição presidencial americana de 2016 e continua espalhando desinformação dirigida ao eleitor americano em 2020.

A grande maioria dos americanos nunca ouviu falar de Qassim Suleimani e política externa é o assunto mais ignorado em ano de eleição presidencial como este 2020. Política externa fica ainda mais distante do radar de um país que se envolve em guerras com uma força voluntária depois de eliminar o serviço militar obrigatório em plena guerra do Vietnã, em 1973.

A falácia de que o assassinato de um general iraniano nos torna mais seguros é facilmente aferida pelos nova-iorquinos. É uma sensação familiar para quem, como esta repórter, observou, à distância, o desabamento das Torres Gêmeas naquela manhã ensolarada do verão de 2001.

Algo se passa em outro continente e, em poucas horas, cães farejadores se misturam aos passageiros nas estações do metrô. Atores fantasiados de personagens de Disney ou Marvel disputam espaço com jovens soldados da Guarda Nacional com seus uniformes de camuflagem, na Times Square.

Cada viagem em transporte público, cada experiência em aglomerações traz a possibilidade de receber a visita do conflito em outro país. Mas o que as ondas de insegurança não trazem é uma consciência mais clara do papel de cada membro do público, por silêncio ou cumplicidade, na formação das tempestades distantes.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.