Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães

Em democracia derretida, americanos duvidam da legitimidade da eleição presidencial

Fiasco das prévias em Iowa é ponta de um iceberg de incompetência acumulada por décadas

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Esqueçam o Vladimir. Não há serviço secreto russo que consiga emperrar o sistema de votação dos Estados Unidos como o operado pelos próprios americanos.

O fiasco da apuração das prévias democratas em Iowa, nesta semana, é a ponta de um iceberg de incompetência acumulada ao longo de décadas.

Um argumento final dos democratas no Senado, no esforço de convencer um punhado de republicanos a remover Donald Trump da Casa Branca, foi “ele vai repetir o que fez.”

Era o líder do time da acusação no processo de impeachment, deputado Adam Schiff, sugerindo aos americanos que a eleição presidencial de novembro não será limpa. 

Sala de espaço de campanha da pré-candidata Amy Klobuchar no dia após a prévia democrata em Des Moines, Iowa
Sala de espaço de campanha da pré-candidata Amy Klobuchar no dia após a prévia democrata em Des Moines, Iowa - Brenna Norman - 4.fev.20/Reuters

Schiff não estava fazendo uma revelação chocante para o público, mas por motivos que antecedem o espantoso telefonema para o presidente da Ucrânia, no qual Trump soa como um mafioso que fugiu de um filme de Martin Scorsese para ser dirigido por Dedé Santana.

Por que o país cuja constituição, há quase dois séculos e meio, serve de farol para democracias, não consegue mais realizar eleições nacionais com eficiência ou garantir sua credibilidade?

Acaba de ser lançado um livro explicando em detalhes o que pode dar errado.

“Election Meltdown: Dirty Tricks, Distrust and the Threat to American Democracy” (desastre eleitoral: truques sujos, desconfiança e a ameaça à democracia americana”, em tradução livre) desenha cenários possíveis para uma crise constitucional na qual quem sofrer derrota apertada nas urnas em novembro não aceite o resultado.

O autor é Richard Hasen, professor da Universidade da Califórnia, um dos principais estudiosos do sistema eleitoral dos EUA.

“Election Meltown” examina esforços republicanos, depois da eleição de Barack Obama, em 2008, para suprimir a participação eleitoral de minorias, como o aumento de exigências para comprovar o direito ao voto.

Algo que Ron DeSantis, o governador da Flórida, um estado crucial na eleição para presidente, qualificou recentemente de privilégio, não um direito.

Durante a campanha de 2016, Donald Trump se destacou entre os 17 pré-candidatos republicanos por não se comprometer a apoiar o nome indicado pelo partido na eleição geral.

Semanas antes da eleição daquele ano, já candidato oficial, Trump disse num comício: “Lembrem que estamos competindo numa eleição roubada”. E sugeriu que haveria fraude nas urnas.

No poder, Trump continuou a espalhar a tese de que os quase 3 milhões de votos populares de vantagem da adversária Hillary Clinton haviam sido fraudulentos (ele ganhou no Colégio Eleitoral) e que estrangeiros votam nas eleições (não votam, os números foram investigados e são irrisórios).

Hasen revela que Barack Obama estava tão preocupado com a possibilidade de Trump não reconhecer a vitória então esperada de Hillary Clinton que havia um plano de contingência.

Republicanos moderados, como o general e ex-secretário de Estado Colin Powell, seriam recrutados para acalmar o público sobre a legitimidade da apuração.

Em setembro de 2016, Obama convocou os líderes da maioria republicana no Senado e na Câmara e da minoria democrata ao Salão Oval e fez um apelo por um alerta bipartidário aos 50 estados americanos, que controlam a realização de eleições.

Estava claro que a Rússia, além e hackear os emails do Partido Democrata, estava tentando interferir nas eleições.

O líder republicano do Senado, Mitch McConnell, engenheiro da esperada absolvição de Trump das acusações do impeachment, nesta quarta-feira (5), foi o principal obstáculo a uma ação enérgica contra interferência de outro país na eleição presidencial.

Obama decidiu que não devia falar direto com o público porque levantaria suspeitas sobre a legitimidade da eleição. E da eleição de uma democrata que ele considerava garantida.

Além disso, calculou, arriscava manchar sua reputação na reta final do mandato.

Hoje, apenas 62% dos americanos afirmam acreditar que é possível realizar eleições limpas no país.

E 4 em 10 americanos acham provável que outro país tente alterar o resultado do voto para presidente em novembro. 

Hasen escreve que não há proteção adequada, no fragmentado e frequentemente arcaico sistema de votação americano, para um ataque cibernético que, numa hipótese, provoque um apagão num estado em que a vitória de qualquer um dos dois partidos fosse apertada.

E se uma contagem disputada fosse parar na Suprema Corte? Em 2000, a Suprema Corte americana suspendeu a recontagem de votos na Flórida e entregou a presidência a George W. Bush, o arquiteto da catastrófica invasão do Iraque.

Já aposentada, em 2013, a juíza Sandra Day O’Connor se confessou arrependida do quinto voto que roubou (a conclusão não é minha, mas de juristas constitucionais) a vitória do democrata Al Gore.

Mas 2020 é outra era. Em 2000, dois dos juízes que discordaram da decisão que deu a vitória ao republicano Bush eram republicanos, nomeados por presidentes republicanos.

Hoje, um dos dois novos juízes que Trump conseguiu confirmar na Suprema Corte, Neil Gorsuch, é encarado por democratas como ilegítimo.

Ele ocupa a vaga que teria sido preenchida se Mitch McConnell não tivesse bloqueado a nomeação do moderado Merrick Garland quando o juiz Antonin Scalia morreu, dez meses antes do final do mandato de Obama.

McConnell inventou a inexistente tese de que um presidente não poderia escolher juízes a menos de um ano da eleição. E se um voto decisivo para a recontagem eleitoral vier de Gorsuch?

O veterano comediante Bill Maher, que comanda o programa semanal “Real Time”, na HBO, repete, há mais de um ano, a mesma pergunta a políticos convidados: “E se Trump se recusar a sair da Casa Branca?”.

O livro de Hasen sugere que o cenário não é motivo de piada.

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