Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães
Descrição de chapéu Coronavírus

Metáfora da guerra não faz bem à saúde pública ou à democracia

Aplacar a pandemia mais devastadora em um século é fazer guerra?

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“De certa forma, sou um presidente em tempo de guerra”, declarou, solene, o mais despreparado presidente em 243 anos de história norte-americana.

A metáfora da guerra está na boca de governantes e outras figuras públicas em todas as línguas. A negligência homicida de negacionistas no poder serviu de estímulo para a comparação feita por médicos, cientistas e público informado que sempre souberam não se tratar de uma gripezinha.

Mas aplacar a pandemia mais devastadora em um século é fazer guerra? Se palavras têm consequências, metáforas produzem resultados imprevisíveis e despertam certas reações no inconsciente coletivo.

Como, por exemplo, uma “guerra” à pobreza transformada em guerra aos pobres ("googlar" Ronald Reagan). Ou a guerra inicial à Aids, transformada em hostilidade epidêmica contra homens gays.

Donald Trump durante entrevista coletiva na Casa Branca - Kevin Lamarque - 7.abr.20/Reuters

Guerras erodem democracias —“não é hora de pensar politicamente”. A proteção dos direitos humanos pode ser vista como prejudicial à missão maior. E guerras distraem a atenção de preocupações cotidianas e urgentes, como o sistema de saúde mais disfuncional de uma democracia desenvolvida.

Não será possível dissociar a imagem de sacos de corpos empilhados em caminhões refrigerados em Nova York da espantosa injustiça da assistência médica mais cara do mundo.

Guerras são travadas entre países ou blocos de países aliados. O coronavírus não conhece fronteiras. Não há como assinar um tratado de paz ou obter um cessar-fogo com o vírus.

Guerras inspiram pânico e comportamentos extremos como os afluentes comprando todas as máscaras disponíveis, aumentando o risco de morte para médicos e enfermeiros.

Guerras são mais do que momentos de unidade em apoio a um líder. Inspiram xenofobia de linguagem como “vírus chinês” e consequências reais em massa como o internação de americanos descendentes de japoneses em campos durante a Segunda Guerra.

Doenças, como lembrou a autora Susan Sontag, são potencializadas por populistas e demagogos, como os que usaram a sífilis como um produto dos males de sociedades igualitárias.

“Sífilis era a ‘catapora francesa’ para os ingleses, o mal alemão para os parisienses, a doença de Nápoles para os florentinos, a doença chinesa para os japoneses”, escreveu Sontag.

Quatro anos depois de ter implementado uma vasta rede de proteções e investimentos sociais, conhecidos como a Grande Sociedade, o presidente Lyndon Johnson, enterrado no pântano do Vietnã, em 1968, comentou: “Aquela cadela da guerra matou a mulher que eu realmente amava”.

Ele se referia ao dilema em tempos de guerra conhecido como armas versus manteiga, produção militar se sobrepondo à economia civil.

No livro "On Immunity: An Inoculation" (sobre imunidade: uma inoculação, em português), publicado há seis anos, a autora Eula Biss sugere que a melhor metáfora para uma pandemia é a da educação.

O corpo precisa aprender como superar o vírus. Não se constrói imunidade sem a cooperação de todos.

Quem acumula máscaras não acumula anticorpos. Nesse sentido, em vez da metáfora da guerra, temos outra, a da praça pública da imunidade.

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