Nos 100 anos que completa nesta sexta-feira (19), a Folha resistiu a todo tipo de obstáculo ao jornalismo independente. Como boa parte da mídia brasileira, o jornal enfrenta o momento de maior risco à liberdade de imprensa desde o final da nossa ditadura mais recente, em 1985.
A censura hoje dispensa homens de uniforme verde oliva, assim, como os golpes desfechados contra a democracia contemporânea podem dispensar tanques. É também uma censura mais insidiosa, graças à revolução digital e à descentralização das fontes de informação.
Em todo mundo, vimos o aumento do número de autocratas instalados no poder pelas urnas em eleições legítimas –Bolsonaro, Trump– ou fraudulentas –Erdogan, Putin.
Os autocratas das urnas têm em comum, além de má governança, uma agenda clara. Sua estratégia é aumentar o custo do exercício do jornalismo. O ataque sistemático a empresas e indivíduos, como a nossa premiada Patrícia Campos Mello, é a primeira frente da guerra para derrotar a primazia dos fatos como a praça pública que todos compartilham.
Transformar repórteres em notícia é uma tática eficaz para dificultar a cobertura sólida de notícias. Mas está longe de ser original. Afinal, variações da expressão “atirar no mensageiro” são usadas desde a Antiguidade, quando as más notícias não chegavam por WhatsApp e sim pelo portador que arriscava provocar a ira de monarcas e generais no campo de batalha.
O jornalista é um alvo fácil e unificador. O autocrata que não consegue controlar uma pandemia tem tudo a ganhar lançando constantes cortinas de fumaça e apontando para o mensageiro. Só numa sociedade que perde a confiança em fatos científicos médicos prescrevem cloroquina para coronavírus sem que sejam cassados por conselhos de medicina.
A liberdade que é o oxigênio do jornalismo é oposta à liberdade que o autocrata busca. Para se manter impune no poder, ele precisa se libertar de fatos e convencer seus apoiadores de que é vítima de quem insiste em contraria-lo.
Em 2002, pouco antes de mentir para o mundo justificando a catastrófica invasão do Iraque, o governo de George Bush filho ofereceu uma prévia da pós-verdade contemporânea.
Um assessor do ex-presidente disse, então, ao repórter Ron Suskind que profissionais como ele eram “gente da comunidade baseada na realidade”. Perplexo, Suskind murmurou algo como uma defesa do iluminismo e o assessor disparou: “O mundo não funciona mais assim. Quando agimos, criamos a nossa própria realidade”.
Foi preciso um decadente anfitrião de reality show chegar à Casa Branca e depois ser imitado por um decadente ex-capitão para termos a medida do risco que sofremos, dentro ou fora da centenária Folha.
No começo do mandato de Donald Trump, conversei com o historiador Timothy Snyder, autor do livro-manifesto "Contra a Tirania". Perguntei a ele se a imprensa americana era menos imune ao impulso autoritário do novo presidente.
Snyder respondeu que sim. No Brasil, ele argumentou, vocês têm a memória mais fresca do autoritarismo. A Folha inicia seu segundo século sob o desafio constante de desmentir as palavras ouvidas pelo repórter Ron Suskind. Mas, talvez, com a vantagem dos anticorpos da memória do que já enfrentou.
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