“Estou com fome!” Não tive coragem de levantar a cabeça e encarar o homem alto que me abordou na rua deserta, a menos de cem metros do prédio onde moro. Lembro apenas da cor do paletó e que ele estava bem-vestido. Eram 14h30, e tinha acabado de retirar dinheiro de um caixa automático dentro de uma mercearia próxima.
A interação com o estranho não deve ter durado mais do que cinco segundos, tempo em que puxei uma nota de dez dólares solta na bolsa e ele me agradeceu em voz baixa. Não fui assaltada, pensei, enquanto tentava me acalmar, caminhando, sem olhar para trás, até o quarteirão seguinte, onde haveria algum movimento de pedestres.
O incidente aconteceu meses depois do início da pandemia que matou mais de 31 mil só na cidade, primeiro epicentro das infecções por Covid-19. Até então, Nova York era protagonista de outros números ---a metrópole mais segura do país. A tendência chamada de “grande declínio do crime” nos Estados Unidos começou em 1993 e atravessou duas recessões até 2019. A redução drástica no índice de crimes violentos em Nova York resistiu até ao aumento da população de desabrigados, na década passada.
Com o começo da quarentena, as cidades americanas desertas registraram ainda menos crimes, uma tendência semelhante à vista em outros países que impuseram períodos de lockdown.
Mas, semanas após a explosão de protestos raciais contra a morte do homem negro George Floyd, sufocado por um policial branco que é réu num julgamento em curso em Minneapolis, ficou claro que a violência urbana voltou a subir. Nova York, a vitrine da segurança pública, registrou o dobro de tiroteios e 462 homicídios, alta de 44%, em 2020.
Especialistas divergiram ao explicar os 26 anos de declínio do crime nos EUA, usando argumentos como eficiência policial, restrição ao porte de armas e até mudanças demográficas. Não devem discordar de fatores recentes, como a recessão provocada pela pandemia, aliada à perda de confiança em policiais.
George Floyd não foi, é claro, o primeiro homem negro assassinado por um policial, mas sua morte por asfixia, gravada em vídeo, tocou num nervo de tensão racial que repercutiu em vários países. O crime mudou também de maneira decisiva a imagem das forças policiais, prestigiadas por prefeitos como nenhum outro segmento de funcionários públicos nas décadas anteriores.
Confiança na polícia é fator fundamental na prevenção de crimes. A morte de Floyd provocou um clamor nacional por reformas e até pela redução nas forças de segurança pública. Uma pesquisa do Instituto Gallup, realizada nas semanas de protestos raciais de junho passado, mostrou que a maioria dos negros americanos (61%) não quer ver o policiamento reduzido onde moram.
Quando candidato, Joe Biden prometeu criar uma comissão federal de monitoramento de polícias. Voltou atrás e hoje defende a via legislativa para reformas —o que equivale a lavar as mãos. Não deve haver maioria no Senado para impor restrições a métodos usados por policiais, como a chave de braço, que pode resultar em morte por asfixia.
Ocupado com a pandemia e a agenda econômica, além de novas crises internacionais, o governo Biden não quer gastar energia com violência urbana. Mas se a recuperação econômica esperada neste ano não domar os índices de crime, a segurança pública, geralmente tratada como agenda municipal, vai virar munição nacional contra os democratas nas eleições intermediárias de 2022.
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