Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães

Mídia dos EUA não deu atenção merecida ao Afeganistão até a retirada

Foi um comediante o primeiro a fazer a autocrítica na tragédia

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O desfile de horrores em curso no Afeganistão faz com que âncoras americanos alertem espectadores, a cada novo vídeo: as imagens a seguir são chocantes, impróprias para crianças.

Mas a atenção dedicada pela imprensa à mais longa guerra da história dos EUA vinha sendo comparável à de crianças entediadas —até as imagens de corpos despencando de aviões explodirem nas telas. Aí começaram a correria para encontrar culpados e a competição pela indignação súbita.

Membro armado do Taleban ameaça mulher em fila para entrar no aeroporto de Cabul - Jim Huylebroek/The New York Times

Foi um comediante o primeiro a fazer uma autocrítica do papel da mídia na tragédia afegã. Na abertura de seu programa na segunda-feira (15), Stephen Colbert lembrou que seus monólogos refletem as notícias do dia e disse: "Vamos rodar o VT com o que já falei antes sobre o Afeganistão". O vídeo mostrou bolas de capim seco rolando no deserto.

Entre piadas, Colbert argumentou que o choque com a crueldade dos eventos do dia não pode ignorar que um fracasso atravessou quatro presidentes, dos dois partidos, e o desinteresse do público.

É fácil comparar visualmente a fuga dos americanos de Cabul à emblemática fuga de Saigon, em 1975. Uma diferença importante: as guerras hoje afetam os americanos desigualmente. O serviço militar obrigatório foi extinto depois que famílias americanas, ricas ou não, brancas ou não, perderam 58 mil filhos lutando no Vietnã.

Foto do do holandês Hugh Van Es mostra pessoas deixando a embaixada americana na então chamada cidade de Saigon, no Vietnã, em 1975 - Hugh Van Es/ANP/Spaarnestad/AFP

Não haveria 20 anos de guerra se americanos privilegiados estivessem sendo forçados a lutar por uma cleptocracia enamorada de tempos medievais. Não haveria histórias de libertação de mulheres e meninas suficientes para convencer um público ainda com forte DNA isolacionista —depois de décadas de aumento da desigualdade e serviços públicos cada vez mais dilapidados— de que fez sentido enterrar US$ 2 trilhões num país que não fica em pé sozinho.

Para contexto, o Plano Marshall, elaborado para recuperar as economias europeias devastadas pela Segunda Guerra, custou ao contribuinte americano US$ 135 bilhões em valores atuais.

O que não justifica a omissão apontada pelo comediante Colbert. E não alivia a mancha moral e histórica para os EUA que, no enfrentamento com a antiga União Soviética na região, contribuíram para a desestabilização que levou à emergência dos talebans.

Inteligência não faltou sobre a inviabilidade da operação militar no Afeganistão. Um relatório de 2016 da inspetoria-geral da ocupação concluiu que, dentre os 350 mil listados como membros das Forças Armadas afegãs, 200 mil eram soldados fantasmas cujo soldo era distribuído entre autoridades corruptas, numa "rachadinha" de dar inveja a qualquer gajo chamado Bolsonaro.

O público, além de não prestar atenção, não era informado sobre a guerra. Em 2019, o jornal Washington Post obteve 2.000 páginas de documentos até então sigilosos que deixavam claro: sucessivos governos americanos mentiram sobre o fiasco da guerra no Afeganistão. Nem assim o escândalo teve o destaque merecido.

O primeiro pensamento que me ocorreu ao ouvir Joe Biden defendendo com dureza a decisão da retirada foi sobre seu filho Beau, um militar condecorado que lutou no Iraque.

O câncer agressivo que matou Beau Biden aos 46 anos, em 2015, é frequentemente associado à exposição à fumaça dos incêndios de céu aberto. Eram fogueiras feitas pelos militares para queimar lixo com material tóxico no Iraque e no Afeganistão.

A raiva que ouvimos na voz de Joe Biden tem história.

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