Luciana Coelho

Secretária-assistente de Redação, foi editora do Núcleo de Cidades, correspondente em Nova York, Genebra e Washington e editora de Mundo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Luciana Coelho

Na perturbadora "The Handmaid's Tale", venceram os homens de bem

Que prazer masoquista é ver "The Handmaid's Tale", adaptação para a TV do livro da canadense Margaret Atwood de 1985 sobre uma sociedade puritana e doente que tomou o lugar da nossa. Que sadismo é terem lançado a série em plena era Trump.

Com algumas liberdades de adaptação, a produção em dez episódios do Hulu (plataforma de vídeo ainda indisponível no Brasil), como no livro, transcorre no tempo presente, mas em uma realidade alternativa na qual grupos puritanos venceram a guerra de valores e poder.

Os EUA não existem mais, e em seu lugar foi fundada a República de Gilead, uma teocracia totalitária onde os cidadãos são divididos em castas e permanentemente vigiados, seja pelos supostos olhos de Deus ou por seus pares temerosos.

Nessa terra de medo e sussurros, às cada vez mais raras mulheres férteis cabe procriar. Apenas. Para tanto, são mantidas escravas de comandantes e de suas esposas, estupradas mensalmente em um ritual conhecido como "a cerimônia".

A narradora desse conto de terror é Offred (de of Fred, "do Fred"), uma mulher que já teve marido, filha e amigos mas foi capturada ao tentar fugir para o Canadá e entregue à família de um militar (Joseph Fiennes).

Quem dá rosto e voz a Offred é Elisabeth Moss, em interpretação magnífica e angustiante que contrasta com sua libertadora Peggy, de "Mad Men". A ela se deve boa parte do sucesso da adaptação imaginada por Bruce Miller, produtor de séries de ficção científica como "Os 100".

Mas "The Handmaid's Tale" (lançado no Brasil pela Rocco em 2006 como "O Conto da Aia") não é ficção científica, segundo disse a autora em entrevista ao "Guardian" em 2003, e sim "ficção de ciência social": algo que poderia, de fato, acontecer.

A declaração hoje soa premonitória. Em fevereiro, com as vendas do livro em alta, Atwood, 77, afirmou ver uma ressurgência dos valores puritanos do século 17 que inspiraram sua obra, particularmente na depreciação da mulher. Sim, essa é uma serie feminista, mas não só.

Há vigilantes, linchamentos e forcas nas adjacências de onde um dia ficou Boston, "o berço da democracia americana". Na imaginação de Atwood, os muros que abrigaram Harvard agora servem para pendurar os cadáveres de gays, padres e médicos que realizam abortos. Livros e estudos, afinal, estão banidos, e o ensino de história e o pensamento crítico são proibidos.

Em seu lugar, há apenas a monocórdica doutrinação moral e religiosa sob a pena de castigos físicos, conduzidas pelas "tias" (a mais proeminente delas é interpretada por Ann Dowdy, de "The Leftovers"), matronas encarregadas de manter na linha as servas —entre elas, Alexis Bledel ("Gilmore Girls"), Samira Wiley ("Orange is the New Black") e Madeline Brewer (idem).

Não é por acaso que as distopias ocupam o centro da produção audiovisual recente, desbancando as comédias românticas e os épicos que reinaram na abundância das décadas de 1990 e 2000. São, pois, tempos sinistros que nos espreitam.

"The Handmaid's Tale" estreou no serviço americano Hulu na quarta (26) e não tem previsão de exibição no Brasil. A colunista assistiu os primeiros episódios com auxílio de um servidor VPN

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.