Luciana Coelho

Secretária-assistente de Redação, foi editora do Núcleo de Cidades, correspondente em Nova York, Genebra e Washington e editora de Mundo.

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Luciana Coelho

'O Mecanismo', mais uma vez

Thriller de José Padilha carrega nas tintas e arrisca-se no timing, mas não é o desastre que muitos imaginam sem ver

Erra quem acredita que "O Mecanismo", thriller policial de José Padilha e Elena Soarez sobre a Lava Jato e a extensão de corrupção no Brasil, é antipetista. Ela é antipolítico, como quem prega ser contra "tudo que está aí" (embora também trate de criticar batedores de panela). Para saber disso, contudo, é preciso ver a série toda.

Foi preciso voltar ao tema porque a primeira coluna escrita resenhava apenas os três episódios que a Netflix liberou para jornalistas antes da estreia (e eles não continham as distorções mais sérias em relação ao noticiário —não à toa, nos EUA a praxe é que haja ao menos cinco para amparar uma resenha).

Frise-se que na essência, a série é policial, não política. A política está presente para fazer as vezes de vilão, de antagonista dos policiais impolutos que nadam contra a correnteza da burocracia e do parasitismo, os mocinhos de sempre de Padilha.

Seus protagonistas, portanto, são a delegada Verena Cardoni (Caroline Abras) e o doleiro Roberto Ibrahim (trabalho soberbo de Enrique Diaz capaz de conduzir, sozinho, o espectador até o último episódio), ambos versões de gente real.

Não estão em primeiro plano as versões ficcionalizada de Lula ("Higino"), em bela interpretação de Artur Kohl, Dilma Rousseff ("Janete Ruscov"), Aécio ("Lúcio Lemes") ou Michel Temer ("Samuel Thames"). Os três últimos, aliás, são apresentados em caracterizações quase circenses, mas não tão diferentes daquelas pintadas pelos respectivos adversários políticos.

Janete é ríspida e despreparada; Lúcio é um playboy que consome uísque e comprimidos sem parar e que diz ter a imprensa no bolso; Thames é um pusilânime sem carisma. Há o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos ("Mário Garcez Brito") como uma eminência parda dos corruptos e o empreiteiro Marcelo Odebrecht ("Ricardo Brecht"), que na pele de Emilio Orciollo Neto parece um psicopata.

"O Mecanismo" muda fatos reais para aumentar a voltagem dramática do roteiro, e o faz sem condescendência com um lado ou outro. Se o roteiro cria uma cena em que Higino pede a Janete a troca do comando da PF, ele mostra também Lúcio e Thames brindando um conchavo para derrubar a presidente e parar as investigações. Nada disso, até onde se sabe, aconteceu.

Padilha e sua trupe não inventaram o recurso, porém se servem dele para reforçar sua tese de sempre, de que o Brasil é carcomido pela corrupção de alto a baixo e por todos os lados, da forma mais maniqueísta possível. A questão a ser colocada é o timing, que parece imprudente no momento em que as investigações estão em curso, em ano eleitoral, e com o público tão polarizado.

De resto, trata-se de entretenimento ligeiro, que evolui nos episódios finais (cuja direção foi sabiamente entregue a Daniel Rezende) para um thriller razoável. Se a Netflix merece condenação por levar ao ar produções medíocres, "O Mecanismo" não é seu delito mais grave.

Podia, apenas, prescindir do investigador forçosamente aposentado Marco Ruffo, o personagem de Selton Mello que serve para dar voz às teses do autor. Afinal, desde "Tropa de Elite" já se sabe o que ele pensa.

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