Jean-Xavier de Lestrade é um sujeito paciente, e do raro tipo em que a paciência se paga. É graças à fascinação do documentarista francês pelo sistema criminal e à sua determinação em entendê-lo que podemos revirar um julgamento de assassinato em suas entranhas como nem a ficção mais brilhante possibilitaria.
A minissérie "The Staircase" (a escadaria), no ar na Netflix, é resultado de 15 anos dessa dedicação e um diagnóstico notável das falhas do sistema criminal americano (Lestrade já se dedicou à sua França natal, mas o fervor americano por especialistas e suas teses faz deles um objeto especial).
Seus 13 episódios, produzidos em 2004, 2011 e 2017 a partir das filmagens iniciadas em 2002, acompanham os desdobramentos da morte da executiva americana Kathleen Peterson e o julgamento de seu marido, o escritor Michael Peterson, por assassinato.
O corpo de Kathleen, 48, é achado em dezembro de 2001 ao pé da escada da enorme casa que dividia com Michael em Durhan, Carolina do Norte.
Quem o encontra é Michael, um romancista best-seller então com 58 anos e em seu segundo casamento, com quem Kathleen passara parte da noite conversando e bebendo à beira da piscina. Chamada pelo escritor, a polícia se depara com uma cena de terror, com paredes repletas de sangue e a executiva inerte diante do recém-viúvo atônito.
A partir daí, Lestrade —contemplado com um Oscar em 2002 por "Murder on a Sunday Morning", de temática similar— persegue a investigação, o julgamento e os anos que Peterson passaria preso pelo suposto crime.
Embora a história seja contada sempre do ponto de vista do réu, o acesso pleno a ele, à sua família e aos seus advogados não criam certezas imediatas no espectador.
A cena da morte, afinal, é incongruente —tanto sangue em uma queda não é comum. Michael Peterson é rico, inteligente, hábil ficcionista e um tanto frio. Sua equipe de defesa é pragmática e diligente.
Não é um personagem que atraia imediata empatia ou nos fisgue. Esse papel cabe ao advogado David Rudolf, um prodígio em cena, e ao poder que histórias de assassinato intrincadas têm sobre nosso lado perverso.
Diferentemente de "Making a Murderer" (2015), outro documentário criminal de sucesso da mesma plataforma, "Staircase" não reconta a história a posteriori, mas acompanha seu avançar com a mesma impotência e estranheza que aqueles que dela participam.
Eis o trunfo: ao montar esse quebra-cabeça em tempo real e só aos poucos se afastar para enxergá-lo em contexto, Lestrade também demonstra quão frágeis podem ser as convicções, em uma época em que se tornou comum que cada pessoa talhe seus próprios "fatos", entre aspas mesmo.
A seu favor, pesa ainda que tanto quanto as debilidades do sistema de Justiça, conduzido obviamente por gente e não por dogmas infalíveis, importe ao diretor como se forjam e ruem relações familiares, estas também amparadas em instinto e certezas etéreas.
É angustiante e pedagógico.
‘The Staircase’ está disponível na Netflix
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