Luciana Coelho

Secretária-assistente de Redação, foi editora do Núcleo de Cidades, correspondente em Nova York, Genebra e Washington e editora de Mundo.

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Descrição de chapéu Maratona

Suspense norueguês 'Kieler Street' põe em dúvida o que são pessoas de bem

Série junta Henrik Ibsen com roupagem de thriller nórdico para falar de aparências

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Uma das peças mais sublimes já escritas sobre a ambiguidade humana de caráter e o afã em se conformar a modelos ideais de felicidade e sucesso é “Casa de Bonecas”, que o norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) escreveu em 1879 e que mostra a angústia de Nora, uma dona de casa que reluta em se encaixar no papel de bela-recatada-e-do-lar.

É em Ibsen, e em sua ainda atual “Casa de Bonecas”, que “Kieler Street”, um suspense dramático criado e dirigido pelo também norueguês Patrik Syversen, busca a sua inspiração central, embora, numa primeira olhada, ele pareça só mais uma série criminal.

Cena da série norueguesa 'Kieler Street'
Cena da série norueguesa 'Kieler Street' - Divulgação

Ao narrar a história de um ex-bandido que tenta levar uma vida normal, sob disfarce, em uma cidadezinha norueguesa conhecida por ter o menor índice de criminalidade entre todos os países nórdicos, a fictícia Slusvik, a série que o Film&Arts estreou dia 14 deste mês dá um passo além e coloca em discussão o que seria, afinal, essa tão almejada “normalidade” (muitas aspas aqui).

Conhecemos Jonas (Thorbjørn Harr) já casado com a professora Elin (Andrea Bræin Hovig), padrasto da adolescente Sofie (Ylva Fuglerud), trabalhando em um café da modorrenta cidadezinha nórdica em um momento de seu breve verão.

Seus únicos problemas parecem ser a dependência do álcool, da qual se trata, e algum grau de conformismo com um chefe truculento e uma enteada mimada. Mas não seria um drama se tudo fosse exatamente o que parece.

O passo além está justamente nessa normalidade que rodeia Jonas, impactada por um acidente —talvez um crime— que surge no terceiro episódio. Seus vizinhos, essas pessoas de bem, tão bacanas e solícitas, são quem dizem ser?

Sua mulher? Seu chefe? O jornalista em crise, a prefeita obcecada por manter a reputação de Slusvik intacta, as policiais que hesitam entre as ordens e sua missão são mesmo as boas almas que apresentam em público? E o que vale para manter-se assim, tão impoluto aos olhos dos outros?

Não há novidade na premissa, que moveu muitos clássicos literários, e Syversen, roteirista e diretor, certamente não é Ibsen, ainda que faça questão de evocar o mestre e soletrar sua inspiração em uma cena escolar aleatória (o maior erro da série, que é boa, é explicar demais as coisas, deixando poucas reticências para o espectador completar).

Há, no entanto, mérito em adaptar dilemas literários tão perenes nessa roupagem mais atual dos thrillers nórdicos, que de umas duas décadas para cá deram pra encantar meio mundo com suas paisagens simétricas, muita neblina e imensas janelas —quem visita a Noruega há de se assombrar com as janelas que, para compensar os muitos dias de pouco sol, expõem tanto da vida doméstica ao mundo. Dá para especular que more aí parte da obsessão com aparências impecáveis da qual Ibsen tratou.

Jonas, o anti-herói construído como uma espécie de Walter White às avessas, um criminoso que se converte em cidadão modelo, é só um dos que se disfarçam, e é por ele que o espectador vai constatando que o rótulo “pessoas-de-bem” é possivelmente um dos mais cretinos que a humanidade já inventou.

Cabeças mais cansadas poderão se entreter com a boa história de crime e mistério, atrativa o suficiente para segurar dez episódios de 45 minutos. E, uma nota de curiosidade, já que a Noruega debate ultimamente como lidar com a falta de diversidade étnica em suas produções: como é estranho ver uma série em que todos são branco e quase loiros.

“Kieler Street” (2018) é exibida às terças, às 22h, no Film&Arts; no dia 28 irá ao ar o terceiro episódio

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