Há uma pequena e —divertida— joia hispano-mexicana que não deveria passar despercebida na pororoca de lançamentos da Netflix.
"Alguém Tem Que Morrer" é uma história de família, um novelão com tomadas à Almodóvar que toma de pano de fundo o regime franquista na Espanha em todos os seus recalques e embala uma crítica social ferina. Ah, sim, e tem Carmen Maura no elenco.
Maura, cuja carreira segue tão prolífica aos 75 quanto quando ela divava com Almodóvar, é a matriarca Amparo, uma mulher que testemunhou a morte do marido e desde então mantém a família em rédea curta, entre os desmandos domésticos e as visitas ao clube de tiro no qual triunfou.
Como ocorre com muitas mulheres fictícias e reais do lado direito do espectro político, é complexo atribuir o adjetivo "conservadora" sem as devidas ressalvas a Amparo.
Sim, ela tem posições políticas conservadoras, bate continência ao generalíssimo e insiste em demonstrar sua aversão aos direitos alheios.
Por outro lado, é uma mulher que nos anos 1950 comanda uma família e seus negócios sozinha, sem traço de subserviência nem resignação.
Sua contraparte é a nora mexicana, Mina (Cecilia Suárez, de "Casa das Flores" e "Capadócia"), uma progressista que engole os abusos do marido, Gregorio (o argentino Ernesto Alterio), e da sogra mantendo-se num estado de suspensão nos dias que se sucedem sem novidades. Até que seu filho retorna para casa após dez anos de ausência.
As turbulências que a volta de Gabino, papel de Alejandro Speitzer, produz vão além do casarão da família.
Aguardado como solução para o aperto financeiro da família, que o espera casar com uma noiva rica, vivida por Ester Expósito, Gabino volta do México acompanhado de um amigo, o bailarino Lázaro (Issac Hernández, estrela do Balé Nacional Inglês). Embora seja evidente a tensão sexual entre os dois, não está claro se o relacionamento é erótico ou uma profunda amizade.
Para a família e para uma sociedade ultraconservadora, na qual denunciar é um meio de galgar degraus e gozar da confiança do regime, pouco importa. O afeto em público, mesmo que não ultrapasse um abraço, é suficiente para o veredito. São "maricones" e portanto devem ser punidos.
A forma delicada como as relações entre os personagens se desenrolam num ambiente cada vez mais abafado, no qual é quase possível sentir o cheiro de mofo exalar da TV, dá à história uma condução elegante e ao espectador uma angústia crescente. O "Alguém Tem Que Morrer" do título só pode ser um eco na cabeça de quem assiste.
São lindas as cenas de Lázaro dançando, alegoria do fato de ele, o estrangeiro, aquele com a profissão tão intrigante quanto atrelada a preconceitos, ser o único personagem realmente livre ali.
Quando a minissérie começa a desandar para o clichê, é a dança de Lázaro ou o estampido das competições de tiro que interrompem o curso para oferecer alguma surpresa.
O diretor e roteirista Manolo Caro já tinha demonstrado habilidade em trabalhos anteriores, como "Casa das Flores", também Netflix.
Filho do meio publicitário que é, sua atenção a cenários e figurino é irrepreensível, e seu olhar para as vontades humanas, atento. São três capítulos, só, e uma pista de que, embora tantos duvidem, o mundo já foi bem pior.
"Alguém Tem Que Morrer" está disponível na Netflix.
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