A Apple TV conseguiu algo original e inesperado no emaranhado de improvisos criativos em que se transformou a produção audiovisual com 13 meses de pandemia, ao longo dos quais montar um set de gravação cheio de gente soa suicida. O suspense "Calls" (telefonemas) é inteiro em áudio, mas precisa ser visto, e não só ouvido.
Alguns motivos fazem a série assinada pelo diretor uruguaio Fede Alvarez que chegou à plataforma há uma semana sobressair entre tantas produções caseiras e semicaseiras, filmadas por Zoom e uma pororoca de podcasts. O primeiro é a excelência do roteiro.
Alvarez orientou a carreira para o suspense e o horror —escreveu a versão de 2013 de "A Morte do Demônio". Em "Calls", se atém ao gênero, mais especificamente no espaço que vagueia entre o sobrenatural e a fantasia científica, à la "Além da Imaginação".
É um subgênero que renovou seu vigor na última década, com filmes como "Nós", de Jordan Peele, e séries como a alemã "Dark", na Netflix, entre outros, e o roteiro se apodera dele com engenhosidade incomum, deixando para a cabeça do espectador desenhar rostos, ações e ambientes que, nas mãos do diretor de 43 anos, ficam encobertos pelos diálogos telefônicos que dão título à produção.
Enquanto ouvimos essas conversas telefônicas entrecortadas por ruídos humanos ou não tanto, na tela há apenas ondas de áudio (que oscilam ao som das vozes), às vezes formando algum desenho hipnótico que lembra os antigos protetores de tela.
Todas insinuam eventos não naturais —alienígenas, psicológicos, sobrenaturais, fenomenais, dentro da física quântica, religiosos? A manutenção da pergunta em aberto sustenta os nove episódios numa constante expectativa.
O outro fator é o peso do elenco, com Rosario Dawson , Aubrey Plaza, Lily Collins, Judy Greer, Nick Jonas, Mark Duplass e o onipresente Pedro Pascal (interpretando um chileno, como ele). É gente capaz de dar a um diálogo que dura de dez a 15 minutos a vivacidade angustiante que esperamos só de produções visualmente elaboradas.
Por fim, há a inovação do formato, que se sai muito bem em meio a tantos já tentados e absorve completamente o espectador. O áudio em si seria suficiente, mas o espectro de áudio na tela, com a transcrição das conversas, garante que a atenção fique ali, sem saltar para outras telas como é tão comum hoje.
Ao fazer o espectador imaginar o que pode estar acontecendo do outro lado da linha, da mesma forma que metade dos personagens imagina, "Calls" submerge o espectador por completo, como é necessário hoje.
Um obrigada ao meu colega Mauricio Stycer por traduzir tão bem a angústia deste trabalho em sua coluna na qual questiona qual papel cabe a nós, críticos e resenhistas, quando a realidade é tão assombrosa. Escrever e propor uma leitura que não assuste, angustie ou constranja tem sido uma forma de manter a sanidade e, espero, a dos leitores. Avante, Stycer.
‘Calls’ está disponível na Apple TV
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