É uma aposta e tanto a que faz "Kevin Can F* Himself", produção da Amazon Video que chegou à plataforma neste mês e tem como protagonista Annie Murphy, dona de um Emmy pela Alexis de "Schitt's Creek": trazer uma narrativa ora do ponto de vista das sitcoms dos anos 1980 e 1990, ora como um drama soturno na perspectiva contemporânea.
A parte do público que superar o choque que essa costura causa será contemplada com uma "metassérie" com um questionamento interessantíssimo sobre tudo que andamos vendo —e rindo de— nos últimos anos.
O tema central aqui é abuso doméstico. Allison, papel de Murphy, é casada com o Kevin do título, vivido por Eric Petersen, um sujeito que instala TV a cabo e passa boa parte do tempo em joguetes infantiloides com o vizinho, Neil, papel de Alex Bonifer, e o pai, Pete, papel de Brian Howe.
A Allison cabe cuidar da casa, atender às vontades de Kevin, trabalhar em uma loja de bebidas e ser insultada diariamente por Patty, papel de Mary Hollis Inboden, excelente, a irmã de Neil, que evita sua crise existencial matando tempo com o trio abobado.
Essa parte da produção tem as cores estouradas das sitcoms familiares que fizeram sucesso, com risadas gravadas e textos encadeados em punchlines —aquelas piadas curtas—, quase sempre sobre casamento e um suposto status inferior da mulher. É a típica comédia que povoou a TV até bem recentemente.
Allison, entretanto, não é a prototípica mulher de sitcom. Ela tem aspirações maiores, a mediocridade da vida que leva no interior de Massachusetts a aborrece, e a sensação de estar presa a um casamento tenebroso, massacrada pelo ego do marido, a corrói. Ela quer matar Kevin.
Nesses momentos, a fotografia muda, mais sombria, com sutilezas de cenas e diálogos que seriam mortíferas numa sitcom clássica. Há espaço para discutir até a principal crise de saúde dos Estados Unidos, a epidemia de dependência de opioides, que domina parte considerável da população local.
O incômodo causado pela contraposição de cenas tão leves e artificiais —sublinhado pelo fato de Murphy ter recém-saído de uma personagem meiga e destrambelhada para interpretar esta, profundamente infeliz— com aquelas em que se trata de morte, overdose, crise de identidade, adultério e infelicidade sem meias palavras é enorme —e ocorre sem forçar nenhuma barra.
É como se abríssemos uma porta que não havíamos percebido, meio escondida na parede, e dela saíssem bichos estranhos que nunca percebemos estar lá, mas estavam.
Por quanto tempo, afinal, produções de TV nos talharam para enxergar o casamento e as mulheres de uma determinada forma, ou, pior, para que acreditássemos que certos comportamentos abusivos, nocivos, eram aceitáveis ou mesmo desejáveis?
O roteiro de Valerie Armstrong, um afago para quem gosta de história da TV, é do tipo "ame ou odeie", ao mesmo tempo nada trivial e muito familiar. Risos até vêm, às vezes. São de nervoso.
A primeira temporada de "Kevin can F* Himself" está disponível na Amazon Video; a segunda foi encomendada
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