Luciana Coelho

Secretária-assistente de Redação, foi editora do Núcleo de Cidades, correspondente em Nova York, Genebra e Washington e editora de Mundo.

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Descrição de chapéu Maratona Séries

'Round 6' faz sucesso ao opor capitalismo selvagem a totalitarismo igualitário

Série sul-coreana que une games a crítica social deve virar a mais vista da Netflix após passar 12 anos na geladeira

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O roteiro de "Round 6" foi considerado bizarro demais quando Hwang Dong-hyuk, o criador da série prestes a se tornar o maior sucesso de público da Netflix, o apresentou. Era 2009, e Hwang achou que seu drama sobre gente desesperada que aceita participar de uma competição de jogos infantis na qual se aposta a vida jamais veria a luz do dia.

"Mas, 12 anos depois, o mundo havia se tornado um lugar em que uma história de sobrevivência tão peculiar —e violenta— passou a ser bem aceita", contou ele em entrevista ao Korean Times na semana passada, quando sua caricatura ora macabra ora sarcástica da sociedade já havia se tornado, menos de 15 dias após a estreia, sucesso global.

"Round 6" não se pretende sofisticada nem esconde sua premissa simples: é uma alegoria exagerada que contrapõe a ruína lenta em uma sociedade competitiva à igualdade plena sob um totalitarismo sangrento. Triunfa, porém, ao adotar um tom mais cínico e provocador do que outros sucessos da plataforma (como a ingênua "Casa de Papel") e filmes adolescentes do subgênero.

No enredo, 456 pessoas endividadas, marginalizadas e desalentadas são convidadas a participar de um jogo que premiará seu vencedor com pouco mais de R$ 200 milhões. As regras são simples como brincadeiras de infância que a maioria ali já fez, e a eliminação é literal --quem erra morre. O sangue jorra a todo momento.

"Os jogos que enlouquecem os personagens refletem a ânsia de enriquecer repentinamente com coisas como criptomoedas, valorização imobiliária ou o mercado de ações", explicou o diretor e roteirista sul-coreano de 50 anos.

Bingo. O mundo de 2009 vinha de um período extenso de crescimento e razoável estabilidade, prestes ainda a mergulhar em sua pior crise financeira recente. Depois dela vieram mais turbulências, a ascensão de governos abertamente simpáticos ao autoritarismo e uma pandemia na qual vimos um vírus surgir, matar milhões, jogar outros muitos na miséria e confinar sociedades inteiras.

Não à toa, nos últimos anos, a distopia e o terror prevaleceram no cinema e na TV. Quando o grotesco salta da ficção científica para os noticiários, não há como chamar roteiro nenhum de "bizarro".
Assim, o drama (e o cinismo e o horror) de "Round 6", enraizados em uma desigualdade social brutal, ressoaram em meio mundo, Brasil incluso.

Há mais para explicar a ascensão da série a fenômeno de massa além da busca por uma riqueza capaz de nos blindar da vulnerabilidade social.

A julgar pela disparada na procura pelo dalgona, o caramelo que é a estrela de uma das provas, a evocação de brincadeiras de infância, o apelo à nostalgia e a um momento da vida em que as coisas pareciam simples se mostra um acerto. Para os mais jovens, apresenta um país que já não se enxerga, de vielas, bolinha de gude e doces na porta da escola.

Essa parte do público também se reconhece na linguagem de game, que faz ansiar pela próxima fase e torna matar e morrer ações banais lindamente embaladas em apuro visual e verniz pop.

É uma estética que há muito embebe a produção sul-coreana e inspira cineastas ocidentais como Quentin Tarantino, na qual o excesso de sangue e a trivialidade com que entranhas são expostas apartam o espectador do realismo, tornando o horror tolerável.

Ao mesmo tempo, as dores e medos dos protagonistas são tangíveis, fazendo com que torçamos por eles porque poderiam ser nós. É algo de que nenhuma série, filme ou livro que se preze pode prescindir —bons personagens.

Seong Gi-hun, o anti-herói no modelo consagrado na última década e meia, é um motorista viciado em jogo, às voltas com a mãe doente e a filha criada pela ex-mulher e seu novo e mais próspero marido, que se torna o arquétipo do fracasso pelos parâmetros da sociedade em que cresceu.

Acostumado a encarnar vilões, o ator Lee Jung-jae —espécie de Ricardo Darín sul-coreano— compõe entre a ternura e a canalhice um protagonista muito carismático.

Seu antagonista é Cho Sang-Woo (Park Hae-soo), o vizinho de infância que estudou na mais prestigiosa universidade do país, virou operador do mercado financeiro, desfalcou os seus clientes e esconde isso da família e dos amigos, que continuam a alimentar a imagem de prodígio que o sustenta.

Completa a trinca central a desertora norte-coreana King Sae-byeok (a ex-modelo Jong Honyeon), uma ladra de rua que precisa de dinheiro para resgatar o irmão caçula de um abrigo. Com eles estão um imigrante sem visto explorado pelo empregador, um chefe de gangue perseguido por credores, uma mulher desbocada condenada por seu temperamento insubmisso e um octogenário esquecido com uma doença terminal.

Em suas entrevistas, Hwang, que ainda não confirmou se fará outra temporada, costuma dizer que esses personagens refletem figuras comuns na Coreia do Sul.

Mas não só.

Afinal, ainda que seus dilemas pertençam ao presente, o endividamento rege vida e morte em sociedade desde sempre, e a busca por soluções mágicas é um traço humano que revolução nenhuma conseguiu extirpar.

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