Em "Estação Onze", o futuro é etéreo, o passado é uma sombra que pode assustar ou acolher, e o presente, tão reivindicado pelos personagens, existe apenas como ponto único de convergência entre os dois.
No ar desde dezembro, a minissérie do HBO Max baseada no livro da canadense Emily St. John Mandel é uma mistura de gêneros intrincada, tecida com paciência e esmero, a unir drama, teatro, distopia, épico e ficção científica para falar do que acontece depois que o mundo como conhecemos acaba.
É também uma elegia visual sublime em suas cores, figurinos e quadros amplos que apresenta a arte como a expiação que nos resta.
Como Patrick Somerville, o autor, conseguiu isso tudo é um espanto. Algo de futurismo retrô norteava outras séries que ajudou a escrever, como "Maniac" (Netflix) e "The Leftovers" (HBO), mas aqui está sua obra-prima.
Para moldá-la, contou com uma equipe de diretores talentosos liderada por Jeremy Podeswa (de "O Conto da Aia"), um elenco afinado (Mackenzie Davis, Gael García Bernal, Himesh Patel e Caitlin FitzGerald) e um elo perturbador com nosso cotidiano.
O fim do mundo da série, afinal, sucede uma pandemia de gripe. Diferentemente daquela que conhecemos nos últimos dois anos, ela devasta a humanidade em algumas semanas, deixando os poucos sobreviventes às custas da sorte e talentos insuspeitos para reconstruir.
A trama se apoia nos laços entre seis personagens. Entre os artistas, estão o ator Arthur (García Bernal); Kirsten, a atriz-mirim que estreia em cena a seu lado (Davis, de "San Junipero", o episódio mais pop de "Black Mirror") e suas duas ex-mulheres —a colega de cinema Elizabeth (FitzGerald, de "Sucession") e a executiva e escritora Miranda (Danielle Deadwyler, fenomenal).
Há também seu melhor amigo, o narcisista Clark (David Wilmot) e o mais interessante deles, Jeevan, um espectador que vê Arthur se tornar a vítima zero da pandemia e depois acolhe Kirsten (Patel, do filme "Yesterday").
Ao narrar esses encontros a história salta ora para trás ora 20 anos adiante, quando a trupe da qual Kirsten faz parte leva encenações de Shakespeare aos pequenos e esparsos povoados remanescentes.
A Estação Onze do título é o cenário do livro de ficção científica escrito por Miranda, o qual a atriz carrega consigo desde que foi presenteada por Arthur e no qual procura o sentido de lar.
O exemplar se torna seu único material de leitura e reaparece nas palavras de um homem que se apresenta como profeta e lidera um séquito de crianças (Daniel Zovatto). Para ele, o passado deve ser apagado. Para ela, as memórias reconfortam, e as perdas que as marcam a fazem avançar.
A relação dos dois personagens com o livro é o que vai permitir ou não sua redenção e poderá abrir essa possibilidade aos demais. É curioso ver o roteiro elevar uma graphic novel ao lugar de um livro das revelações, tal qual religião, e suas múltiplas interpretações cabíveis.
Há muitas camadas no enredo circular de "Estação Onze", e percebê-las não pede esforço nem grande repertório (conhecer "Hamlet", porém, torna tudo mais prazeroso). É uma obra que triunfa principalmente na beleza, algo raro quando tratamos de fim de mundo e um contraste com as muitas produções recentes sobre o tema.
Quando não se veem zumbis nem anjos, quando a desgraça ou a esperança não turvam o horizonte, é possível até apreciar a existência humana.
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