Em um dos melhores monólogos da temporada final de "Ozark", que vai ao ar nesta sexta-feira (29), a genial caipira Ruth descreve o casal Byrde para uma empresária prestes a fechar negócio com os dois.
Wendy, alerta ela, é capaz de arrancar seu coração com as mãos se isso a ajudar a chegar aonde quer; Marty finge se preocupar, mas não tem sentimento real, ou está enfeitiçado pela mulher.
É neste ponto que reencontramos "Ozark", com personagens completamente diferentes daqueles apresentados em 2017, quando a série estreou. Marty (Jason Bateman) não é mais o contador que lava dinheiro como atividade paralela e precisa fugir com a família para protegê-la de seus clientes; Wendy (Laura Linney) tampouco é a relações-públicas entediada cuja transgressão mor é o adultério vespertino.
Em quatro temporadas, a última delas dividida em duas levas, em janeiro e agora, o showrunner Bill Dubuque nos conduziu pela erosão moral completa dos Byrde, inclusive a de seus filhos adolescentes, Charlotte (Sofia Hublitz) e Jonah (Skylar Gaertner).
Fez, também, com que olhássemos para Ruth como a verdadeira heroína da série —aquela que cumpre a jornada de queda e redenção, de certa forma, ainda que não saibamos o que os capítulos finais lhe reservam.
Julia Garner, na pele da mulher jovem que se apega a um fiapo de família e assim se mantém cativa de um ambiente que lhe rouba as perspectivas, é a melhor coisa que a TV nos trouxe nos últimos anos.
Como a desajustada que carrega o mundo nas costas e busca propósito em uma vida rodeada de perdas reais e simbólicas, ela fez valer cada episódio da série, e tornou Ruth grande demais para servir de coadjuvante aos Byrde.
Nestes capítulos finais, é a caipira a verdadeira antagonista do casal (de Wendy, sobretudo, já que esta é uma briga de mulheres e o talento de Linney é bem maior que o de Bateman na frente das câmeras). E é por ela que torcemos.
Pode ser culpa de Garner, ou de Ruth, mas não é por um final feliz dos Byrde que esperamos. Como dito no monólogo, eles não apenas se corromperam; eles não têm mais alma.
Não é o que houve com Walter White (Bryan Cranston) em "Breaking Bad", a série com a qual "Ozark" é frequentemente comparada a contragosto da produção.
Mesmo combalido, corrompido, transtornado, ele ainda tinha história e motivação, e ainda que a redenção não lhe fosse possível, ela era almejada. Não com os Byrde, que vêm sendo movidos, há duas temporadas, praticamente pela inércia da escalada social.
Um triunfo da dupla seria demasiadamente cínico para tempos tão carentes de esperança, ainda que seja divertido observar a engenhosidade com que a família-bandida se desvencilha de obstáculos humanos, econômicos ou legais.
Seja como for, quando essas últimas sete horas de episódios terminarem —a Netflix já disponibilizou todos de uma vez—, "Ozark" deixará saudade como um dos grandes dramas do apogeu do streaming.
Não são, porém, Marty e Wendy que entrarão no panteão de anti-heróis televisivos inaugurado na virada do milênio. É Ruth. É Garner.
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