De cara sabia-se que seria tarefa descomunal transpor para as telas as mais de 500 páginas de "Pachinko", uma saga familiar minuciosa em sua devoção a detalhes históricos e às camadas de seus personagens. Mas o Apple TV+, que lançou a série no fim de março, tinha ouro na mão.
Publicado em 2017 (2020 no Brasil, pela Intrínseca), o livro consumiu dez anos da jornalista coreano-americana Min Jin Lee, que condensou numa escrita sóbria e delicada sua exaustiva pesquisa do calvário de famílias coreanas que migraram para o Japão na primeira metade do século 20.
Foi aclamada pela crítica, caiu no gosto do público e iluminou milhões a respeito de gente com a qual a história falhou —como diz uma personagem.
O que chega ao streaming em oito episódios —o sexto vai ao ar nesta sexta (15)— é um vislumbre do livro, no qual as nuances que Lee compôs foram pasteurizadas em algo grandiloquente e menos denso. Extasiante, é verdade.
A saga de Sunja, a menina que trocou os infortúnios da Coreia natal por provações piores no Japão sem nunca deixar de prover para sua família, é contada em múltiplas linhas temporais na série.
Com dezenas de personagens, episódios históricos, três línguas (coreano, japonês e inglês) e informações culturais e sociais pouco sabidas, o formato a prejudica.
A linearidade do livro serve melhor ao drama, que acompanha a protagonista de garota ignorante a matriarca indefectível (Yu-ma Jeon, Minha Kim e a oscarizada Youn Yuh-jung, de "Minari", a interpretam em diferentes fases). Nas mãos dos roteiristas, Sunja disputa protagonismo com o neto Solomon (Jin Ha), personagem cuja dimensão no livro vem de coroar a saga.
As idas e vindas de 1915 (e depois dos anos 1930 e 1940) para 1989 tampouco respeitam a apresentação e composição dos personagens. Mozasu (Soji Arai), o filho mais novo, é construído aos poucos no romance para espelhar toda uma geração de coreanos bem-sucedida porém desprezada no Japão, mesmo tendo nascido lá. Na primeira temporada da série —as lacunas indicam outras adiante— ele é quase um holograma, como Hansu (o astro Lee Min-Ho), o amante egoísta e cosmopolita da protagonista.
A heroína ganhou um voluntarismo de que Lee a privara, pois a criou persistente, insegura e por vezes passiva.
É natural em transposições do tipo que trechos inteiros sejam suprimidos; aqui, contudo, tirou-se parte da motivação dos personagens.
Ainda assim, ver "Pachinko" (o nome vem dos salões populares no Japão onde se joga um caça-níqueis cujas travas lembram pinball) nas telas inebria. A direção de arte e a fotografia são magníficas. Sunja revendo a praia da infância evoca o cinema do chinês Jia Zhangke. Mesmo desbastado o enredo nos fisga.
E o elenco merece ovação —sobretudo Minha Kim, que faz de sua estreia um assombro, e Youn Yuh-jung, um deleite com sua interpretação sutil e firme.
Em sua pretensão grandiosa, "Pachinko" às vezes falha. Nem por isso descumpre sua vocação: apresentar-nos uma vertente do racismo que no Ocidente mal conhecemos, mas cuja crueldade e consequências não fogem de seu absoluto, tão nefasto.
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