Uma máxima em protestos contra a violência sexual, relembrada nesta semana pela jornalista Cristina Fibe, diz que toda mulher tem uma amiga ou parente que sofreu abuso, mas nenhum homem conhece um abusador. É dessa matemática de incógnitas e lacunas que trata "Dois Verões", uma tensa e delicada produção belga que entrou no ar recentemente na Netflix.
O texto de Paul Baeten Gronda e Tom Lenaerts (este, também diretor) se debruça sobre a viagem catártica de um grupo de amigos de juventude 30 anos depois de terem passado juntos um verão trágico.
Em uma das primeiras cenas, Peter (Tom Vermeir), um próspero executivo de tecnologia casado com a ainda mais bem-sucedida Romée (An Miller), sua ex-colega, é chantageado por um anônimo com um vídeo no qual aparece junto a três amigos fazendo sexo com uma mulher desacordada.
A moça é Sofie (Louise Bergez aos 20, Inge Paulussen aos 50), e, evidentemente, trata-se de um estupro.
A cena grotesca passou três décadas perdida na memória do grupo. Sofie nunca falou dela; casou-se com o playboy da turma, Didier (Bjarne Devolder/Herwig Ilegens), teve filhos e tocou a vida como se fosse possível esquecer o abuso. Aos poucos, o que era para ser um feriado com amigos em uma ilha paradisíaca na costa francesa é tragado num redemoinho de culpas, acusações e lembranças.
Quem sabia do crime? Quem agiu para impedi-lo? Por que ele aconteceu? Quem está chantageando Peter e os demais participantes da barbárie —Didier; o agora ministro religioso Stef (Vincent Van Sande/Koen de Bouw) e Mark (Felix Meyer). Seria Luk (Tijmen Govaerts/Kevin Janssens), irmão caçula de Peter, que não violentou Sofie, porém carrega suas próprias culpas?
Seria a própria Sofie? Ou uma de suas amigas, a assertiva Romée (Marieke Anthoni) e a fulgurante Saskia (Tine Roggeman/Ruth Becquart), que foi casada com Luk, tem um segredo com Peter e decide corresponder ao amor juvenil de Stef? Ou mesmo a segunda mulher de Luk, Lia (Sanne-Samina Hanssen), cujo passado como garota de programa é uma bomba-relógio?
A forma como os lapsos e malfeitos de cada personagem se entrelaça, até produzir um quadro sinistro do verão de 1992 e depois, enreda o espectador com uma série de perguntas difíceis que transcendem o crime em si.
Mais ainda, a minissérie (seis episódios) opõe com sobriedade e uma ponta de sarcasmo a visão masculina e a feminina do episódio. Todos concordam que houve excesso; só elas enxergam um crime. A ladainha de justificativas de Peter e dos outros —"estávamos alterados pela bebida e por remédios", "ela queria transar", "ela nem se lembra"— é arrepiante.
O medo e o arrependimento que corroem quase todos (e nunca Peter), o desdobrar da chantagem, e os segredos revirados constroem um enredo engenhoso sobre as mudanças sociais pelas quais passamos a partir dos anos 1990 e que aos poucos dinamitam o silêncio sobre a violência sexual e reconfiguram a própria noção coletiva desse crime.
Notícias tenebrosas como as de uma menina estuprada coagida a ter um bebê, de uma mulher que entregou à adoção a criança gerada em um estupro e foi publicamente humilhada e de gestantes violentadas durante o parto por um médico têm habitado o pesadelo de muitas brasileiras nas últimas semanas.
"Dois Verões" é um vislumbre da banalidade desse mal.
Os seis episódios de "Dois Verões" estão disponíveis na Netflix
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