Luciana Coelho

Secretária-assistente de Redação, foi editora do Núcleo de Cidades, correspondente em Nova York, Genebra e Washington e editora de Mundo.

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Descrição de chapéu Maratona

Um estupro é um estupro, e a série 'Dois Verões' mostra por quê

Drama na Netflix narra implosão de grupo de amigos 30 anos após uma viagem sinistra

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Uma máxima em protestos contra a violência sexual, relembrada nesta semana pela jornalista Cristina Fibe, diz que toda mulher tem uma amiga ou parente que sofreu abuso, mas nenhum homem conhece um abusador. É dessa matemática de incógnitas e lacunas que trata "Dois Verões", uma tensa e delicada produção belga que entrou no ar recentemente na Netflix.

O texto de Paul Baeten Gronda e Tom Lenaerts (este, também diretor) se debruça sobre a viagem catártica de um grupo de amigos de juventude 30 anos depois de terem passado juntos um verão trágico.

Cena da série 'Dois Verões', da Netflix - Divulgação

Em uma das primeiras cenas, Peter (Tom Vermeir), um próspero executivo de tecnologia casado com a ainda mais bem-sucedida Romée (An Miller), sua ex-colega, é chantageado por um anônimo com um vídeo no qual aparece junto a três amigos fazendo sexo com uma mulher desacordada.

A moça é Sofie (Louise Bergez aos 20, Inge Paulussen aos 50), e, evidentemente, trata-se de um estupro.

A cena grotesca passou três décadas perdida na memória do grupo. Sofie nunca falou dela; casou-se com o playboy da turma, Didier (Bjarne Devolder/Herwig Ilegens), teve filhos e tocou a vida como se fosse possível esquecer o abuso. Aos poucos, o que era para ser um feriado com amigos em uma ilha paradisíaca na costa francesa é tragado num redemoinho de culpas, acusações e lembranças.

Quem sabia do crime? Quem agiu para impedi-lo? Por que ele aconteceu? Quem está chantageando Peter e os demais participantes da barbárie —Didier; o agora ministro religioso Stef (Vincent Van Sande/Koen de Bouw) e Mark (Felix Meyer). Seria Luk (Tijmen Govaerts/Kevin Janssens), irmão caçula de Peter, que não violentou Sofie, porém carrega suas próprias culpas?

Seria a própria Sofie? Ou uma de suas amigas, a assertiva Romée (Marieke Anthoni) e a fulgurante Saskia (Tine Roggeman/Ruth Becquart), que foi casada com Luk, tem um segredo com Peter e decide corresponder ao amor juvenil de Stef? Ou mesmo a segunda mulher de Luk, Lia (Sanne-Samina Hanssen), cujo passado como garota de programa é uma bomba-relógio?

A forma como os lapsos e malfeitos de cada personagem se entrelaça, até produzir um quadro sinistro do verão de 1992 e depois, enreda o espectador com uma série de perguntas difíceis que transcendem o crime em si.

Mais ainda, a minissérie (seis episódios) opõe com sobriedade e uma ponta de sarcasmo a visão masculina e a feminina do episódio. Todos concordam que houve excesso; só elas enxergam um crime. A ladainha de justificativas de Peter e dos outros —"estávamos alterados pela bebida e por remédios", "ela queria transar", "ela nem se lembra"— é arrepiante.

O medo e o arrependimento que corroem quase todos (e nunca Peter), o desdobrar da chantagem, e os segredos revirados constroem um enredo engenhoso sobre as mudanças sociais pelas quais passamos a partir dos anos 1990 e que aos poucos dinamitam o silêncio sobre a violência sexual e reconfiguram a própria noção coletiva desse crime.

Notícias tenebrosas como as de uma menina estuprada coagida a ter um bebê, de uma mulher que entregou à adoção a criança gerada em um estupro e foi publicamente humilhada e de gestantes violentadas durante o parto por um médico têm habitado o pesadelo de muitas brasileiras nas últimas semanas.

"Dois Verões" é um vislumbre da banalidade desse mal.

Os seis episódios de "Dois Verões" estão disponíveis na Netflix

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