Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A empatia no caos e a maior das histórias de fim de ano

Os encontros festivos de final de ano podem render ótimas histórias, mas acredito que nenhuma superará o que houve no final de 1914. No Natal daquele ano, o primeiro da Primeira Guerra Mundial, inimigos se uniram para confraternizar. Ao que parece, a iniciativa veio dos alemães que passaram a entoar músicas natalinas. Seus oponentes, os ingleses, fizeram coro. Não tardou para que os homens de lados opostos saíssem de suas posições. Eles, então, trocaram presentes e apertos de mãos. Em alguns pontos do fronte, a trégua chegou até o ultimo dia de dezembro.

Detalhe das mãos das estátuas se tocando
Detalhe da escultura "All Together Now" (todos juntos agora, em tradução livre), do artista Andrew Edward's - Phil Noble/Reuters

Foi o único momento durante todo o conflito mundial em que inimigos confraternizaram. Essa singularidade teve suas razões. Alguns fatores ambientais deram a chance para o improvável: fazer a gentileza prevalecer sobre a fúria da guerra. E o que parecia inverossímil aconteceu, e os soldados se viram como humanos e se aproximaram em harmonia.

Os momentos iniciais da Primeira Guerra Mundial foram marcados por equilíbrio de forças —logo, a moral dos homens das diferentes alianças era semelhante. Estar em condições similares favorece o compartilhamento de sentimentos e ideias, em inferir sobre o que o outro sente e pensa. E um pensamento endêmico ali era sobre sair seguramente das claustrofóbicas trincheiras, locais impregnados de horror, repletos de cadáveres, fezes, ratos e medo.

Mas a atmosfera horrenda foi aliviada, pois os soldados alemães haviam recebido enfeites natalinos. As guaridas enfeitadas aumentaram a dignidade dos soldados. Foi a oportunidade para iniciar uma modesta comemoração.

E qual seria a razão de combater se a festa surgia como alternativa melhor? O clima festivo permitiu sintonia entre cérebros de inimigos e aliados. Quando saíram das trincheiras, já sabiam que não seriam alvejados.

E a empatia foi o que equalizou essa sintonia. Nosso cérebro possui sistemas que nos permitem simular mentalmente os sentimentos e as razões do outro. Um desses sistemas envolve os neurônios em espelho. Essas células entram em atividade quando realizamos uma ação, como nadar, mas também quando observamos outro realizar essa mesma ação. Assim, compreendemos imediatamente o ato do outro.

O “sistema espelho” faz nosso rosto expressar dor mesmo quando não somos o alvo direto da contusão, mas vimos alguém ser ferido. Permite que sejamos contagiados por emoções dos próximos, incluindo a alegria esdrúxula no campo de batalha. Esse mesmo aparato neural pode ativar a ínsula, a mesma estrutura cerebral que nos faz sentir desgosto, quanto somos a vítima direta do desconforto.

Mas a matriz cerebral da empatia requer mecanismos ainda mais complexos. Como, por exemplo, a capacidade mental de fazer associações. Nossos cérebros associam nossas experiências pregressas com o que vemos no outro. Para isso, é necessário acessar memórias.

Os ingleses, ao escutarem os cânticos natalinos, se recordaram da paz de outra época evocada pelas músicas e compreenderam o apreço pela paz que deveria existir em seus inimigos. Ademais, o cérebro possui locais que comparam resultado esperado com o resultado obtido, e estes locais atuam também de forma empática: “eu sei que você esperava, como eu, o fim da guerra antes do fim do ano, mas estamos aqui, nos matando”.

O momento de paz, porém, acabou. Militares mais distantes da linha de frente comandaram o reinício das agressões. O inimigo foi cada vez mais demonizado, e ninguém confraterniza com demônios.

Houve ainda tentativa de apagar esse evento da história, pois as academias de guerra o trataram como insurgência militar. Mas, mesmo assim, a história da trégua de 1914 chegou até nós como um grande momento de consonância humana em meio à aflição.

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