Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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O pacote de leis de Sérgio Moro e o viés racial em atirar em suspeitos

Em estudo, ferramentas foram confundidas com armas quando fotografia de rosto negro aparecia imediatamente antes

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Ao explicar seus projetos de leis antiviolência, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, disse à revista Veja: “um policial, quando enfrenta um quadro de tensão em que não tem o total controle da situação, pode eventualmente (...) acabar respondendo pelo excesso (...). Não se justifica a punição de quem se excedeu em legitima defesa, pessoas não são robôs”.

Em 1999, uma ação policial ocorrida em Nova York exemplifica, ao meu ver, a “resposta pelo excesso”. Oficiais à paisana ordenaram que o imigrante negro Amidou Diallo parasse, mas ele fez um movimento e buscou um objeto em suas vestes. Os guardas acreditaram que ele sacaria uma arma e atiraram 41 vezes. Diallo estava desarmado e morreu enquanto segurava sua carteira, confundida pelos policiais com um revólver. 

 
PM atira a curta distância bala de borracha contra manifestante em São Paulo
PM atira a curta distância bala de borracha contra manifestante em São Paulo - Taba Benedicto/Folhapress

Os policiais foram julgados e absolvidos sob o argumento de que cometeram um erro grave, embora justificável, porque teriam reagido rapidamente frente à crença sincera de perigo real. Protestos contra a sentença bradavam que os policiais mataram por serem racistas. De fato, é possível que o racismo contaminou a ação dos patrulheiros, mas, ao mesmo tempo, é igualmente possível que os policiais acreditaram na existência de risco verdadeiro e iminente e por isso atiraram.

Interessado nessas questões, o neurocientista Keith Payne elaborou um protocolo científico em que fotos do rosto de uma pessoa branca e de uma pessoa negra eram expostas a voluntários. A foto desaparecia em alta velocidade e era sucedida por fotos de pistola ou de ferramenta de mão, as quais também sumiam rapidamente. A sucessão de fotos de rosto e objeto foi repetida várias vezes para cada voluntário. 

Os participantes foram instruídos a classificar o objeto como arma ou utensílio. Ferramentas foram confundidas com armas mais frequentemente quando a fotografia de um rosto negro aparecia imediatamente antes. Armas foram reconhecidas mais rapidamente quando surgiam depois das fotos de rostos de negros.

Existem processos cerebrais automáticos que se iniciam fora da crítica, escapam da nossa consciência e não são submetidos à vontade. Buscam a eficiência e a rapidez e se baseiam em atenção focada.

Keith Payne objetivou ativar esses processos mentais automáticos nos participantes do estudo ao solicitar a classificação imediata de itens como armas ou ferramentas. Ele também criou um método para atingir a memória inconsciente dessas pessoas estudadas. Nesse exemplo, a cor da pele da pessoa da fotografia exposta afetou a memória dos voluntários. Essa nova memória criada influenciou a categorização do objeto em arma ou ferramenta sem que os participantes tivessem consciência dessa influência.  

Podemos extrapolar os achados de Payne para a rotina policial? Podemos concluir que um policial está mais propenso a confundir uma ferramenta com arma quando quem a segura é um negro, ou que armas serão mais rapidamente reconhecidas se um negro é o portador?

Parece que a resposta é sim. Nos EUA, a probabilidade de um negro desarmado ser baleado por policial é cerca de 3,49 vezes superior à probabilidade de um branco desarmado ser alvejado. Por isso, naquele país sobram relatos similares ao da morte de Diallo. Mas que fique claro: a decisão policial de atirar ou não está claramente envolvida em ambiente de insegurança e de alta pressão. 

Não temos certeza se esses dados científicos americanos podem ser extrapolados para a realidade brasileira, mas fico tentado a dizer que sim, ao menos em parte. Compreender o viés racial que influencia a decisão do disparo talvez permita atualizar o treinamento policial com a finalidade de reduzir os excessos e fazer com que aqueles policiais que se excederam tenham o melhor julgamento —seja o resultado final uma punição ou, como no caso Diallo, a absolvição.

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