Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

O estranho caso do homem que ficou eufórico depois de um AVCI

Depressão costuma ser uma complicação de acidentes vasculares cerebrais

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J, irei chamá-lo assim, era um fumante inveterado que não acreditava estar ameaçado por sua sempre elevada pressão arterial e muito menos pelo diabetes descontrolado. Suas artérias sofriam em silêncio os efeitos destas agressões, até que aos 58 anos de existência, um de seus vasos sanguíneos cerebrais entupiu-se de vez, deixando definitivamente sem nutrição boa parte de seu hemisfério cerebral direito. J sofria um AVCI, abreviação de acidente vascular cerebral isquêmico, que liquidou parte do encéfalo de J.   

Mas o negligente homem sobreviveu. Infelizmente com sequelas, que são comuns aos que continuam vivos após um AVCI. J passou a ter que caminhar com auxílio de bengala, já que todo seu lado esquerdo estava enfraquecido. Ademais, nenhum toque mesmo que forte o suficiente para ferir, não era mais percebido se aplicado em seu lado sinistro.

A vida ficara ainda mais difícil para J. A depressão, doença que o afetou por quase toda sua vida adulta; com peculiar falta de energia; baixa estima e melancolia, sempre impôs limites a ele. Sua já muito idosa mãe, preocupada, antevia que ele ficaria ainda mais deprimido frente às novas dificuldades.

Máscara da tragédia e a máscara da comédia, na cor dourada, com fundo dividido na cor preta e branca
Máscara da tragédia e a máscara da comédia, na cor dourada, com fundo dividido na cor preta e branca - Fabio Braga/Folhapress

Entretanto, seis meses após o AVCI, J ligou para sua ex-mulher e falou que desejava reatar. Frente às negativas, não se dobrou à frustração e a alertou agressivamente que ela se arrependeria. Disse que outras mulheres não perderiam a oportunidade, pois ele ficaria rico e atraente.

Seu plano de enriquecimento era disponibilizar vídeos na internet, em que explicava o que era um AVC e dava dicas de superação. Em sua concepção, teria vasta audiência e monetizaria essa sua experiência.

Eufórico, ficava com o pensamento acelerado, dormia poucas horas, sempre preparando seus conteúdos, diga-se de passagem, rudimentares e desorganizados. Sua euforia o deixava impulsivo. J passou a comprar quase tudo o que via em propagandas online. Para piorar, após uma discussão banal, tentou agredir uma pessoa, mas tudo o que conseguiu foi se desequilibrar e cair. Depois do tombo, foi levado ao hospital, pois estava difícil acalmá-lo. 

Durante sua estadia hospitalar, membros da equipe médica, entre discussões e exames, concluíram que a mudança comportamental caracterizava o diagnóstico de mania. Mania não se refere a obsessões ou compulsões, nem à mania disso ou daquilo. Mas, sim, a uma alteração de humor: quem sofre fica anormalmente expansivo e irritável.

Essa condição é mais ou menos o oposto da depressão. Embora contrárias, as duas condições constituem os polos afastados de uma doença única, o transtorno bipolar.

Os médicos não acreditavam que J sofria de transtorno bipolar, mas achavam que o AVCI mudara o humor de J.

Os dois hemisférios, que constituem nosso cérebro, em conjunto criam pensamentos e comportamentos. Esta construção nem sempre é harmoniosa. Às vezes um cabo de guerra une duas diferentes formas de pensar.  

Autoestima elevada, valorização de aspectos positivos da vida e crença em um bom futuro estão associados à atividade fisiológica do hemisfério cerebral esquerdo. O seu par à direita, em compensação, está atento ao que é negativo. E, como consequência, acaba por ser vigilante e inibidor, além de provocar sensações de insegurança, propícias para o desenvolvimento de pensamentos pessimistas.

O AVCI de J lesou o lado direito, assim o hemisfério esquerdo prevaleceu e mudou a chave de seu comportamento. 

Mania não é uma complicação comum após um AVCI, depressão sim. Compreender como certas lesões cerebrais provocam inesperadas alterações de humor nos esclarece como os danos encefálicos podem romper o equilíbrio dinâmico entre alegria/tristeza a ponto de provocar mania ou depressão

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