Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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A criatividade humana não é ilimitada para tornar 'Sympathy for the Devil' um samba

A composição de músicas pressupõe a existência de um referencial, intelectual ou emocional

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Por favor, permita-me contar uma história: há 50 anos, o vocalista da banda Rolling Stones, sir Mick Jagger, ficou impressionado com a musicalidade do samba e do candomblé quando estava  em férias no Brasil. Inspirado, criou a sonora percussão da canção "Sympathy for the Devil" e avisou que criara um samba.

Mick Jagger mantém uma longeva criatividade artística. Para isso, muda o tema de suas canções conforme as compõe. Entretanto, não foi capaz de fazer tamanha guinada para que "Sympathy for the Devil" fosse reconhecida como samba. Ser criativo faz a imaginação romper limites, mas nem todos.

O vocalista Mick Jagger, da banda inglesa Rolling Stones, em show no Rio de Janeiro
O vocalista Mick Jagger, da banda inglesa Rolling Stones, em show no Rio de Janeiro - Ricardo Borges/Folhapress

Aliás, compor pressupõe a existência de um referencial, intelectual ou emocional que, de certa forma, é um limite de fronteiras mal definidas para o processo criativo. O referencial pode ser compreendido como um trilho que carrega novas ideias sonoras. Essas ideias serão combinadas e recombinadas sobre mediação de conhecimento técnico, habilidades e repertório, quesitos fundamentais para a obtenção de melodia harmoniosa e interessante.

Enquanto o artista compõe, também recorda os padrões sonoros e os movimentos necessários para manejar instrumentos musicais, balançar as cordas vocais ou reger orquestra. Portanto, há uma base fixa, construída por treinamento, que servirá de alicerce para o desenvolvimento criativo da composição.

Assim, criar exige controle racional do processo da composição, mas também espontaneidade. E como o cérebro concilia essas duas atividades mentais aparentemente opostas? A resposta a essa pergunta não mostrará apenas por que Mick Jagger não conseguiu se desvencilhar do roqueiro que é, e da sua incapacidade de ser um sambista, ainda que momentaneamente, mas também permitirá que entendamos como funciona a mente criativa.

Por isso cientistas estudaram cérebros de músicos por meio de ressonância magnética funcional, e perceberam que durante exercícios de improvisação musical a rede do modo padrão ficou ativada. Difícil de entender o que isso significa? Fique calmo, pois confundir o leitor não é da natureza do meu jogo.

A rede do modo padrão é um conjunto de neurônios de diferentes regiões cerebrais, que se interconectam. Seus componentes estão ativos quando nossos pensamentos vagueiam, quando recordamos o passado ou quando imaginamos o futuro. Nosso cérebro desliga essa rede e ativa outras quando prestamos atenção em algo e quando agimos em função desse algo.  

A atividade da rede modo padrão durante a composição musical prova que compor música é mergulhar em introspecção e “se desligar” de distrações. Mas essa imersão não elimina por completo controles cognitivos e motores, atributos de outras redes de neurônios cerebrais, já que criar música nos obriga a fazer escolhas das melhores alternativas sonoras e executar os movimentos precisos ao tocar instrumentos ou cantar. 

Além disso, a introspecção musical não pode ser absoluta. Rotineiramente, músicas são criadas por conjunto de pessoas que buscam um resultado estético comum. Portanto, é necessária a atenção ao trabalho dos colegas e às suas reações. Ou seja, criar música obriga o cérebro a manter ativas redes neurais que normalmente não trabalham juntas.

Para Jagger fazer um samba, ele teria que ignorar seus instintos musicais que são voltados para rock e blues. E também teria que buscar referências que só existiriam após muito contato com o estilo brasileiro. Caso contrário, quanto mais espontâneo Mick Jagger for, mais britânico ele será e mais distante ficará do samba. Para um inglês, aprender a falar português sem o sotaque é mais fácil do que compor um samba.

Ao propalar que "Sympathy for the Devil" não é um rock, Jagger tropeçou em uma armadilha, dessas que pegam trovadores. Mas o saldo lhe foi muito favorável, e o sucesso da música ainda persiste. Um prêmio à sua criatividade.

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