Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Luciano Magalhães Melo

A primeira e as instâncias superiores neurológicas

Reflexo age na percepção de dor, mas mecanismo pode ser suprimido

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quando somos feridos é normal que sintamos dor. A dor é um sinal de alerta, mas é uma experiência da nossa consciência, essencial para que sobrevivamos. Entretanto, quase sempre, a primeira ação do nosso corpo contra o que nos fere, é um reflexo.

Ou seja, independe das instâncias cerebrais, inclusive da percepção de dor. Por isso, se você tocar em uma brasa incandescente, imediatamente afastará a mão, milésimos de segundos antes de seu cérebro revelar a você o desconforto provocado pela queimadura. A primeira instância organiza o reflexo, a forma mais ágil de nos defender contra o que nos lesiona.

Mas, se houver vantagem, este reflexo poderá ser voluntariamente suprimido. É por isso que conseguimos manter o braço parado enquanto uma enfermeira o espeta com uma seringa. Esse nosso recurso só é possível pois há instâncias superiores, localizadas no cérebro, que podem fazer nosso corpo ficar estático e tolerar a dor, se for julgado como benéfico.

Cérebro em campo onde também está agricultor
Instâncias que conduzem comportamento têm objetivo de nos manter intactos, com reações racionais, às vezes, e intuitiva em outras - Dwi Oblo/Reuters

Mesmo em situações extremas podemos aguentar os maiores desprazeres doloridos. Um exagerado exemplo que confirma essa premissa aconteceu em 29 de abril de 1961. Nesta data, o médico Leonid Rogozov percebeu que sofria de apendicite aguda. Ele estava em uma expedição soviética na Antártida, sob péssimas condições climáticas que impossibilitavam qualquer tipo de resgate.

Sua única chance de sobreviver, seria se auto-operar. Foi o que ele fez: resistiu à dor e, de bisturi à mão, salvou-se. Utilizando suas instâncias superiores, Rogozov percebeu que a única forma de se livrar da dor e da morte era provocar em si mesmo ainda mais dor —em organizada cirurgia.

Usamos nossa primeira instância para processarmos informações rapidamente e agir automaticamente contra situações críticas. As instâncias superiores cuidam do que vem depois. Mas não pense você que a primeira instância está assentada apenas em processos reflexos. Seu principal objetivo é poupar o consumo de energia que as instâncias superiores tanto demandam. Isso nem sempre acontece através de um simples reflexo.

Para entendermos isto melhor lembremo-nos de fatos da Segunda Guerra Mundial, quando rotineiramente a Inglaterra era bombardeada por aviões nazistas.

Operadores de baterias antiaéreas eram obrigados a reconhecer a que pátria servia um avião tão logo apontasse no horizonte. Alguns ingleses se tornaram ótimos “especialistas” nesta tarefa fundamental para repelir o avanço inimigo e evitar o abate de aviões ingleses. Estes “especialistas” foram convocados para ensinar essa estratégica habilidade a outros. Mas simplesmente não conseguiam organizar explicações para transmitir seus conhecimentos.

Contudo, a solução foi simples: os aprendizes foram à prática acompanhar as operações. Ao ver um avião distante eram solicitados a dizer a qual país pertencia a máquina. Um “especialista”, em seguida, corrigia se necessário. Por tentativa e erro os neófitos aprenderam.

Está aí um típico aprendizado tácito, processado em uma instância submersa à consciência. Adquirido através da observação e memorização de inúmeros padrões, que são estatisticamente analisados pelo cérebro humano.

Processo semelhante acontece com a aquisição da linguagem. Uma criança, ao aprender a falar, tem enfoque em saber explicitamente os significados das palavras. Mas, ao escutar repetição de padrões de frases, aprende implicitamente regras gramaticais.

Antes mesmo de ser ensinada sobre o que é sujeito e predicado, aliás, esta é uma regra de conhecimento explícito, que um dia lhe será apresentada. O conhecimento implícito não está ligado a raciocínio e sim à intuição. Por isso, é muito difícil de ser ensinado através dos processos habituais.

As instâncias que conduzem nosso comportamento têm como objetivo nos manter intactos. Auxiliam nosso corpo a reagir, às vezes de forma elaborada e racional, outras vezes de forma intuitiva e rápida, aos eventos que nos atingem.

Em algumas ocasiões são redundantes, em outras, contraditórias. Mas, se alguma dessas instâncias fosse definitivamente impedida de executar suas ações, seria desnecessária e sumiria em nossa escalada evolutiva.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.