Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Corremos porque estamos com medo ou ficamos com medo porque corremos?

Teorias sobre a interação mente e corpo podem ajudar a explicar as emoções humanas

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Uma jovem mulher sofreu uma fratura da medula cervical. Sua exagerada calma, mesmo após compreender que ficaria tetraplégica e sem sensibilidade pescoço abaixo, me deixou intrigado.

Anos depois, ao ler uma matéria sobre a história da ciência das emoções, acabei por recordar daquela indiferença que tanto me instigou, pois um trecho que descrevia a primeira teoria científica sobre o medo parecia trazer a explicação que até então eu nunca tivera. Uma vez na história, o medo foi compreendido como uma emoção desencadeada pelo ato de fugir. Primeiro o organismo reage, depois se emociona. 

Em outras palavras, o medo só aparece após o cérebro perceber o movimento corporal contra o perigo. Portanto, não corremos porque estamos com medo da onça, mas temos medo por estarmos correndo dela.

Quadro "O Grito", de Edvard Munch (1895)
Quadro "O Grito", de Edvard Munch (1895) - AFP

Essa teoria, embora antiga, parecia explicar a calma da minha paciente. A fratura cervical rompeu a principal conexão dela entre o cérebro-corpo. Como consequência, seus músculos ficaram inertes, incapazes de prepará-la para fuga. Ao mesmo tempo seu cérebro não percebia mais qualquer sinal corporal. Sem essas duas funções orgânicas, não havia como se alarmar, o que a tornava menos vulnerável ao medo. Portanto, se a primeira teoria ainda vale, a fratura cervical que deveria trazer pavor à paciente fazia o contrário, acalmando-a.

Entretanto, o texto que eu lia me apresentava outras teorias, que incorporavam novas descobertas. Foram descritos circuitos cerebrais e sistemas cognitivos, que, se estimulados artificialmente, geram o temor mesmo sem a existência de um agressor. Experimentos biológicos revelaram que a amígdala cerebral é o centro gerador do medo e de outras emoções. O medo passou a ser compreendido como uma emoção que guia o organismo para a fuga, e a fuga deixou de ser vista como ingrediente para o medo. Para complicar a credibilidade da primeira teoria, foi muito bem observado que pessoas com lesão medular temem.

Sendo assim, a ausência de traços de pavor da minha paciente não foi causada pela fratura medular, já que todas suas estruturas cerebrais estavam intactas e funcionantes. E minha leitura não respondeu minhas dúvidas.

Um artigo científico publicado recentemente na revista médica Jama Psychiatry, porém, me forçou a rever minha compreensão sobre o medo. O conteúdo deste artigo talvez cause uma nova inflexão de ideias.

Os autores sabiam que um procedimento chamado bloqueio anestésico do gânglio estrelado tinha um potencial efeito terapêutico contra o estresse pós-traumático, pois conheciam relatos de pacientes que haviam sido submetidos a esse procedimento para tratar outro problema mas melhoravam do transtorno. Os pesquisadores resolveram estudar melhor este efeito e produziram um estudo controlado. Ao conclui-lo, obtiveram bons resultados e trouxeram novas informações práticas sobre a fisiologia do medo ao apontar que o estresse pós-traumático possui mecanismos cerebrais e periféricos.

 Cerebrais porque este transtorno surge após uma pessoa ter seus sistemas encefálicos processadores de medo alterados por uma experiência terrível. Isso faz com que até mesmo estímulos inócuos invoquem as lembranças traumáticas, o que provoca uma sucessão de sobressaltos de terror.

Periférica porque o gânglio estrelado está bem longe dos centros cerebrais do medo. Na verdade, ele se situa no tórax. Esse gânglio é uma das estruturas corporais que habilitam o corpo a responder contra o perigo. Ao demonstrar que o bloqueio de seu funcionamento abranda o medo, vem a forte sugestão de que sua ação pode influencia o temor.

O estudo publicado na Jama Psychiatry aponta que o corpo colabora com nossas emoções, uma reedição da primeira teoria sobre o medo. Um bom exemplo de que, frente a novos fatos, sempre vale a pena revisar conceitos antigos.

Referências:

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12406609

https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMra1612499?articleTools=true

https://jamanetwork.com/journals/jamapsychiatry/article-abstract/2753810

https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1754073916639664?journalCode=emra

 

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