Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

O câncer mostrando suas garras para Nietzsche ver defeito

O paciente disse nunca ter imaginado haver nervos que dão consciência sobre a posição da mão

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Em um feriado, em uma pequena cidade, um neurologista recebeu pedido de ajuda que interrompeu seu dia de turismo.

Foi atender a súplica e encontrou um homem que apertava o lado esquerdo de seu próprio tórax. Dizia sentir muita dor por onde suas mãos fincavam. Estava pálido e respirava com dificuldade, mas conseguiu agradecer quem havia buscado o médico.

Ofegante, perguntou se teria sua pressão arterial mensurada; para ele, a hipertensão justificaria sua situação.  A resposta veio em alerta: “Você vai para o hospital agora!” 

Segundo o médico, a demanda era muito maior do que apenas aferir um sinal vital: havia a real preocupação de um infarto cardíaco. Os que estavam ao redor providenciaram um carro para levar o homem que passava mal ao pronto-socorro. Ambulância ali era tão disponível quanto submarino.

Paciente pensou ter o tigre sob controle - Xinhua

O tempo gasto  até o hospital seria breve , o que não impediu uma proveitosa conversa. O doente explicou que estava em tratamento contra câncer pulmonar em um hospital famoso de São Paulo. A dor havia começado no dia anterior, acontecias às inspirações, principalmente se profundas. Mas a falta de ar começara há poucas horas. Com essas informações, o neurologista pensou que o problema estaria nas pleuras (membranas que revestem os pulmões), não no coração.

“A doença me fez perceber funções de meu corpo que eu nem imaginava existirem, agora entendo melhor minha complexidade”, disse o socorrido, nitidamente fascinado por compreender a causa de um de seus vários sintomas.

Ele explicou, como exemplo, que de olhos fechados, era incapaz de dizer se sua mão esquerda estava para cima ou para baixo, muito menos qual seria a posição de seus dedos. Uma metástase havia crescido em sua medula cervical, e de forma aparentemente precisa, destruiu o fluxo de informações nervosas de que agora ele carecia.

Ele dizia nunca ter imaginado existir um sistema de nervos cuja função é dar consciência sobre a posição da mão. O neurologista se espantou com a correta interpretação do leigo. De bônus, pareceu-lhe que seu interlocutor, ao compreender sua particular deficiência, obteve ânimo para enfrentar a doença. 

Havia ali, uma semelhança com Nietzsche —ao menos foi o que médico pensou. O filósofo sofria de crises intensas de dor de cabeça que duravam dias, com vômitos fleumáticos. Atualmente, é possível que todas as faculdades de medicina nem mais ensinem o significado de vômitos fleumáticos, mas o pensamento de Nietzsche persiste, e antes de influenciar o mundo, teve como influencia seu martírio cíclico.

As recorrentes dores do filósofo se tornaram inspiração para ele, e permitiram a síntese de que o padecer é necessário para se produzir o brilho e alegria do espírito, pois a dor força a produção de pensamentos intensos e profundos. Nietzsche fez uma observação aparentemente simples, mas vigorosa, ao ressaltar que é impossível ter a vida constituída apenas por prazer e alegria.

As agruras , portanto, obrigatoriamente integram o viver. Logo, amar a vida em sua plenitude permite amar o próprio penar. E esse amor sem restrições aperfeiçoa o individuo. O filósofo, contudo, não fazia apologia do sofrimento.

As elucubrações do médico foram abatidas pela fase seguinte da conversa: “Acho melhor voltar para a quimioterapia. Toda vez que atraso muito o tratamento, um novo sintoma aparece, forte como uma patada de um tigre. A quimioterapia doma o tigre.” 

Após chegarem ao hospital, e depois de exames realizados, ficou evidente que a dor era outro ataque do felino, de fato na pleura. O neurologista julgou que o paciente até aprendeu algo por sua doença, mas que serviu apenas para inflá-lo em vaidade.

A arrogância lhe fez fantasiar estar no controle. Foi um erro lembrar-se do tratamento apenas ao sentir as unhas do tigre. Por fim, sua postura só alimentou o animal, que passou a atacá-lo com mais fúria até provocar sua morte, dias depois.

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