Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Da perseverança ao desastre, na saúde e na doença cerebral

Perseveração é a tendência de repetir, infindavelmente, um padrão de atitudes

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P, irei chamá-lo assim, era competente, rígido e experiente. Aos 50 anos, conquistou o comando de um grupo de trabalhadores da construção civil. Em um determinado dia, sua extenuante rotina foi interrompida por um pensamento fixo. P insistia que mais água deveria ser acrescida para o preparo de cimento, mesmo quando essa tarefa fora concluída. Agitou-se e ficou agressivo, depois dizia doer a cabeça. Febril, foi levado ao hospital. Ao médico, repetia que há duas décadas se dedicava à “firma”. P estava trancado em suas perseveranças, um sinal clínico de nome que não poderia ser outro: perseveração.

Perseveração, de acordo com a neurologia, é a tendência de repetir, infindavelmente, um padrão de atitudes. Um produto de inércia cognitiva, quando a reavaliação de atitudes foi interrompida, mesmo à luz de novas informações que contradizem o propósito inicial dos atos.

Tomografia cerebral
Tomografia cerebral - Marisa Cauduro/Folhapress

O lobo frontal monitora os acontecimentos e as recordações, e julga o que deve ser considerado relevante em uma dada situação. Se essas operações não forem bem executadas pode ocorrer a perseveração. O lobo frontal, se avariado, pode bloquear a percepção de novos fatos e fixar a atenção em evento único. Então, uma ideia constante dominará a mente, a transparecer em um comportamento repetitivo.

P, quando olhou para a betoneira, recordou- se da importância da água para o cimento, porém, esse conceito ficou retido em sua memória de curto prazo, a controlar seu raciocínio. Dessa forma, era incapaz de reconhecer que a mistura já fora feita e que outro assunto deveria ser tratado. Insistia em uma ação fruto de um raciocínio desatualizado que em situações normais seria inibido.

P estava doente. Porém cérebros saudáveis podem preservar e mimetizar um cérebro adoecido. Um exemplo clássico é o voo 173 da United Air Lines, de 1978. Os muito experientes piloto e copiloto, durante as manobras para aterrissagem, notaram algo errado quando o trem de pouso foi baixado. Por isso, abortaram a descida, seguiram em voo e se puseram concentrados para resolver o problema. Enquanto perseveravam sobre análises da situação, esqueciam-se de verificar a reserva de combustível. A negligência fez o avião cair em pane seca.

Qual seria a razão cognitiva para alguém, mesmo que experiente e saudável, perder a habilidade de mudar de estratégia frente a demandas urgentes?

A resposta está na dinâmica cerebral: interferências contra atividades em curso podem ser subjetivamente interpretadas como ameaça. A consequência será a excitação de uma parte crucial do lobo frontal. Assim, o cérebro entra em um modo de atenção restrita, o foco se fixa em um objetivo único, exclui alternativas viáveis e ignora novas informações. Essa lacuna da eficiência mental pode ocorrer com maior probabilidade em situações complicadas, quando muitas provações são postas no cenário e também quando há cansaço ou emoções.

Concentrar-se em um único aspecto de um desafio e ignorar outras características cada vez mais relevantes podem causar eventos dramáticos, não apenas na aviação. Pense em um médico a perseverar em prescrever um tratamento ineficaz contra uma doença, por exemplo, cloroquina contra certa infecção viral. Apenas porque se apegou a um ou outro comentário positivo sobre o uso da droga e persiste a ignorar provas da futilidade e riscos de sua conduta. Ou um clínico, que desejoso em não encarar as demandas de um paciente complicado, persevere em dizer que o enfermo está apenas com uma gripezinha e ignora que o doente já demonstra desespero por respirar.

Após horas de exames, descobriu-se que P teve a perseveração como primeira manifestação de um abcesso que acometia seu lobo frontal. Mas perseverar não é imposição exclusiva dos danos encefálicos.

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