Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A parábola do bebê ganso em uma tentativa de explicar o vício como doença

A evolução não preparou o cérebro humano para suportar o vigoroso prazer de estímulos viciantes e o contato repetitivo com eles, raros na natureza

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Se lermos Erick Kandel, neurocientista vencedor do prêmio Nobel de medicina, entenderemos os processos mentais como processos cerebrais. Dessa forma, qualquer doença mental deve ser considerada uma doença cerebral. O encéfalo, guardião da mente, é, por conseguinte, a sede das doenças mentais. Jerome Wakefield, psiquiatra da Universidade de Nova York, não concorda plenamente1 com este raciocínio. Ele acredita que algumas doenças da psique podem ser a resposta de um cérebro normal ao ambiente corrompido.

Wakefield usa o nascimento do ganso para ratificar sua opinião. Essa ave é geneticamente determinada a seguir o primeiro ser vivo que enxergar, que quase sempre, será a mãe. O psiquiatra nos convida a imaginar um gansinho que, ao sair do ovo, fita uma raposa. O cérebro do bebê ganso o comandará rumo ao predador. Os grasnados maternais não trarão opção para a avezinha, que seguirá para a morte.

Ganso pequeno e sua mãe à beira de um lago
Ganso pequeno e sua mãe - Peter Cziborra/Reuters

Para Wakefield, o comportamento autodestrutivo do gansinho é uma doença, mesmo com a ressalva de que dentro do crânio do recém-nascido tudo está normal, obediente à determinação genética. O médico faz um paralelo entre a raposa atarraxada na mente do jovem ganso e o vício, que em humanos fixa um desejo no cérebro. Para ele o vício é uma doença mantida por um encéfalo saudável, mas produzida pela oferta abundante de prazer.

O médico de Nova York continua: milênios de evolução não “projetaram” o cérebro humano para suportar o vigoroso prazer dos estímulos viciantes. O contato repetitivo com eles, tão raros na natureza, podem perverter respostas geneticamente desenvolvidas e evolutivamente selecionadas que regulam a saciedade e a busca pelo prazer.

Portanto, uma carga prazerosa excessiva pode ativar e reforçar uma circuitaria cerebral que fixará uma ânsia pela busca da repetição. Assim, a mente de quem sucumbe ao vício é tomada por um desejo decisivo de alimentá-lo repetitivamente. Mas também é dominada por uma força que anula a atenção às alternativas saudáveis e a outras prioridades. O comportamento que emerge da condição é uma doença, mas o cérebro que o produz é normal. Esse órgão foi apenas desvirtuado por um estímulo pelo qual não fora programado para enfrentar. O gansinho, por sua vez, teve seu comportamento distorcido, por não ter um cérebro preparado para ter à primeira vista o canídeo.

Todavia, anteriormente à nova tese de Jerome Wakefield, precisamente em 1997, um artigo publicado pela revista Science2 trouxe ao público argumentos de que o vício deve ser compreendido como uma doença cerebral, crônica e recorrente. A pesquisa aponta que o uso de drogas inicialmente é voluntário, porém, explicita que o uso contínuo delas adultera o funcionamento cerebral e proporciona o vício, uma moléstia dos circuitos cerebrais de recompensa, motivação e memória.

A despeito da influência do conteúdo da Science, ainda persiste o debate se o vício é doença ou um distúrbio da escolha3. Os defensores dessa última possibilidade afirmam que os viciados em drogas mantêm um resíduo de controle racional sobre suas atitudes e decisões, mesmo que algumas dessas causem dano.

É difícil afirmar se Wakefield foi original ao lançar uma nova teoria sobre a conceituação do vício ou se foi audacioso e conseguiu a proeza de sintetizar duas ideias opostas em um único conceito. Porém a possibilidade de existir uma doença alicerçada em um órgão saudável, soa ousado demais. Ao definir o vício como afecção de quem tem o cérebro normal Wakefield rejeita ser possível existirem modificações cerebrais patológicas4 que suportariam todo o complexo comportamento dos viciados.

Isso está na contramão de algumas descobertas já publicadas. Não obstante, o psiquiatra também passa longe de responder a uma antiga questão: qual seria a razão da maioria dos que experimentam drogas não se tornarem viciados?

Embora essa pergunta não tenha resposta final, sabe-se que existem perfis psicológicos mais suscetíveis5 ao uso abusivo de substâncias. Logo, há a possibilidade de existir um comportamento pré-vício, talvez doentio, ainda não completamente caracterizado.

Referências:

1. Wakefield JC. Addiction from the harmful dysfunction perspective: How there can be a mental disorder in a normal brain. Behav Brain Res. 2020;389:112665. doi:10.1016/j.bbr.2020.112665

2. Leshner AI. Addiction Is a Brain Disease, and It Matters. Science (80- ). 1997;278(5335):45-47. doi:10.1126/science.278.5335.45

3. Hall W, Carter A, Forlini C. The brain disease model of addiction: is it supported by the evidence and has it delivered on its promises? The Lancet Psychiatry. 2015;2(1):105-110. doi:10.1016/S2215-0366(14)00126-6

4. Volkow ND, Koob GF, McLellan AT. Neurobiologic Advances from the Brain Disease Model of Addiction. Longo DL, ed. N Engl J Med. 2016;374(4):363-371. doi:10.1056/NEJMra1511480

5. Volkow ND, Boyle M. Neuroscience of Addiction: Relevance to Prevention and Treatment. Am J Psychiatry. 2018;175(8):729-740. doi:10.1176/appi.ajp.2018.17101174

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