Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Lombroso, o homem que disse haver um rosto típico de criminoso, não foi cancelado

A afirmação pseudocientífica, além de ingênua e rudimentar, não era nova

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Em 1870, o médico Cesare Lombroso, ao examinar o corpo do criminoso Giuseppe Villella, teve uma ideia radiante. Havia encontrado um detalhe no crânio do cadáver idêntico, acreditava, ao que se via em macacos. Para ele o achado anatômico era a marca física da natureza bestial, que denunciava uma irresistível força motriz à perversão. Aquele relevo ósseo, julgou o médico, surgia pela pressão de uma parte cerebral detentora da ancestral violência do homem primitivo. Não parou por aí, a mandíbula avantajada e o maxilar alto, vistos em macacos, seriam semelhantes ao que se notava nos “selvagens” e nos criminosos. Portanto havia uma determinação biológica que marcava a fisionomia e impelia certas pessoas a expressar a ferocidade instintiva dos animais inferiores.

Esse raciocínio não era de todo inédito. Outros, muito antes, afirmaram que detalhes da aparência revelavam a personalidade. Dessa forma, bastaria medir a topografia craniana para descrever as características psíquicas de alguém. Original ou não, Lombroso desconstruiu a ideia dominante de que fazer o mal seria uma escolha regida pelo livre-arbítrio. Ao criar um método de estudar o criminoso, o legista fundou a criminologia e passou a exercer tremenda influência.

A eloquência e a objetividade do legista eram irresistíveis. Talvez, por atenderem a uma premissa, antiga e atual, de ser possível julgar pessoas pela aparência. Assim criavam-se seguidores, intencionados a remover os que possuíam traços físicos compatíveis com a mente criminosa. Para piorar, a teoria lombrosiana seria posta para justificar concepções racistas, endossando falsos conceitos para apoiar preconceitos.

seis figuras desenhadas
Imagens feitas por Cesar Lombroso - Wikimedia Commons

Lombroso colecionava centenas de crânios de criminosos, utilizados para inúmeras medidas e estatísticas a dar verniz de objetividade às suas conclusões. Porém, ninguém sério conseguia reproduzir seus experimentos. Tão logo, críticas se somaram para deixar claro que os métodos de Lombroso eram ruins e suas descobertas insustentáveis.

As más intenções estão na aparência: uma ideia rudimentar, antiga e ingênua, sofisticada pela técnica pseudocientífica de Lombroso. Um século e meio depois do annus mirabilis dele, eu, de frente à vastidão de estudos, não preciso de esforço para dispensar-lhe péssimos adjetivos e malhar meu finado colega mais suas concepções. Mas não, nem vou torcer pelo seu “cancelamento”. Afinal, o médico foi importante quando sustentou haver “algo biológico” a empurrar alguém para o crime e provocou outros a lhe contra-argumentarem embasados em fatos.

Lombroso sabia —e também nós do século 21— que existe uma ligação cérebro-mente-comportamento. O “algo biológico” está no cérebro, sem se deixar visível nas formas corpóreas. Realmente, o encéfalo de muitos criminosos é anormal, como confirmou o psiquiatra forense Seena Fazel. Ele publicou em 2002 que, se comparado a quem está livre, o presidiário tem risco dez vezes maior de possuir transtorno de personalidade antissocial. Os detentores dessa condição são mais agressivos, desinibidos, e opõe-se mais às regras sociais. Estudos de imagem cerebral mostram que essas pessoas possuem redução das regiões cerebrais associadas ao julgamento, motivação e afeto —a anomalia biológica.

Estas técnicas de neuroimagem continuarão a avançar e, quando combinadas aos crescentes recursos estabelecidos pela inteligência artificial, permitirão a leitura do cérebro em favor à psiquiatria forense. As aplicações destas novas tecnologias podem trazer à prática o que, talvez, Lombroso, tenha desejado. Como predizer as chances de alguém cometer um crime hediondo ou reincidir.

Entretanto, o médico veementemente disse uma grande besteira ao aliar o crime à aparência. E besteiras, se muito bem defendidas, atravessam séculos. De tal modo que autoridades chinesas almejam reconhecer potenciais criminosos por meio de análise automática de imagens faciais. Criminologistas acreditam haver intenções de perseguição racial nessas operações.


Referências:
1-Jaco Berveling. My God, here is the skull of a murderer!” Physical appearance and violent crime. Journal of the History of the Neurosciences 2020 https://doi.org/10.1080/0964704X.2020.1789937

2- Seena Fazel. Serious mental disorder in 23 000 prisoners: a systematic review of 62 surveys. The lancet. 2002 DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(02)07740-1

3- Christina O Carlisi .Associations between life-course-persistent antisocial behaviour and brain structure in a population-representative longitudinal birth cohort. The Lancet psychiatry 2020 https://doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30002-X

4- Leda Tortora. Neuroprediction and A.I. in Forensic Psychiatry and Criminal Justice: A Neurolaw Perspective Front. Psychol. 2020 https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.00220

5- Convict-spotting algorithm criticized 2016 https://www.bbc.com/news/technology-38092196

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