Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Nós humanos às vezes somos histéricos

Ninguém está livre de sofrer um sintoma de doença que não existe

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No pronto-socorro de um hospital, um jovem recebia atendimento por se debater continuamente. Aparentava estar inconsciente, de olhos quase sempre cerrados. Por vezes deixava de balançar seus braços para agarrar e agitar as grades da maca. Os que tentavam socorrê-lo não se recordavam de outra convulsão tão dramática. Para agravar a situação, as tentativas de medicar quase sempre eram rechaçadas por chutes e socos. E os espasmos continuavam...

Andares acima, uma mulher dizia estar com as pernas paralisadas. Vigiada por familiares, tentava exaustivamente mover seus membros inferiores, mas não conseguia contrair um único músculo abaixo da cintura. Horas após, incentivada pelo médico, levantou-se e caminhou cambaleante até a porta de seu quarto. Em nenhum momento perigou cair.

Esses dois casos supostamente diferentes têm algo em comum, a inconsciência. Pois é impossível a alguém, inconsciente durante uma crise epiléptica, conseguir agarrar algo e agredir a quem se aproxima de seringa na mão. E também ninguém incapaz de mover minimamente as pernas conseguirá caminhar. Inconsistência é uma pista para o diagnóstico de transtorno funcional, a condição que faz os sintomas iludirem pela falsa sugestão de haver uma doença específica que não existe.

Pesquisador de luva segurando cérebro
A amigdala cerebral é a estrutura que nos causa a experiência do medo - Denis Balibouse/Reuters

No passado, os dois pacientes seriam caracterizados como histéricos. Esse termo tem sua origem na palavra grega hystera, que nomeia útero. Uma tradição milenar ensinava haver algo de errado neste órgão para provocar o comportamento exagerado; portanto, da manifestação clínica sem a causa clínica. Esse termo foi considerado pejorativo por ligar uma víscera feminina a um tipo de transtorno. Apenas no século 19 alguns médicos iluminados perceberam que o problema não estava no útero, mas no cérebro. Esse reconhecimento, um dia, faria o termo “histeria” cair em desuso e ceder a vez para “transtorno funcional”.

Charcot (1825 –1893), o pai da neurologia moderna, se interessou pelas desordens reconhecidas à sua época como histéricas. Estudioso, elaborou uma teoria para compreender o que causaria tanto sofrimento. Para ele, fatores traumáticos físicos, emocionais e até mesmo sexuais seriam as causas dos sintomas, que só emergiriam depois de um período de elaboração. O neurologista dizia que os “histéricos” eram muito sugestionáveis.

Sigmund Freud (1856–1939), aluno de Charcot, introduziu o conceito de defesa, um processo psíquico para soterrar as memórias dolorosas. Porém, esse artifício provocaria um conflito psicológico que se extravasaria através das manifestações histéricas. As publicações freudianas ganharam importância e fama, o que deixou o estudo da histeria nas mãos de psiquiatras e psicólogos. Os neurologistas, por sua vez buscavam correlacionar lesões anatômicas às doenças e aos sintomas.

Contudo, estima-se que, em algumas clínicas neurológicas, 16% dos pacientes sofrem de transtornos funcionais. Portanto, neurologistas continuam muito próximos a essas desordens, presentes em casos clínicos que levantam questões por vezes complicadas. Estaria o paciente a simular? Há um sintoma amplificado? Ou as manifestações são armadilhas da inconsciência? Felizmente a compreensão de como o cérebro trabalha vem a nos ajudar.

Estudos científicos demonstram algumas das peculiaridades neurais nos quem têm o sintoma, mas não deveriam ter. Para iniciar a explicação, meu caro, saiba da existência do mecanismo encefálico que lhe faz ter a autopercepção do domínio de seu corpo. Essa é uma atribuição mental que diferencia os que se equilibram em uma corda bamba, dos que não. As pesquisas apontam que as áreas cerebrais envolvidas nesse senso estão comprometidas em quem possui transtorno funcional, então os movimentos ”saem do comando”. Além disso, nessas pessoas, a amigdala cerebral, a estrutura que nos causa a experiência do medo, responde mais a qualquer estímulo. Isso tudo faz com que tais humanos antecipem negativamente o que está por vir.

De fato, o transtorno funcional não é simulação. E traumas prévios como diziam os estudiosos da histeria, podem estar no centro da gênese desses problemas. Mas ninguém está livre de sofrer um sintoma de uma doença que não existe. Ou de acreditar que há algo de errado com o físico, quando não há.

Referências:

Anna Sadnicka , Corinna Daum, Reduced drift rate: a biomarker of impaired information processing in functional movement disorders. Brain . 2020 Feb 1;143(2):674-683. doi: 10.1093/brain/awz387

Isabel Pareés , Harriet Brown Loss of sensory attenuation in patients with functional (psychogenic) movement disorders Brain. 2014 Nov;137(Pt 11):2916-21. doi: 10.1093/brain/awu237. Epub 2014 Aug 26.

Julien Bogousslavsky (2020): The mysteries of hysteria: a historical perspective, International Review of Psychiatry, DOI: 10.1080/09540261.2020.1772731

Maurer CW, LaFaver K, Ameli R, Epstein SA, Hallett M, Horovitz SG. Impaired self-agency in functional movement disorders: a resting-state fMRI study. Neurology 2016;87:564–570. https://doi.org/10.1212/WNL.0000000000002940

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