Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A perda de olfato que o novo coronavírus causa

Não é incomum que curados da Covid-19, até os que tiveram formas bem leves da doença, tenham queixas persistentes

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O avô de 75 anos, confuso, mal conseguia acordar naquela manhã. Por isso foi levado até um pronto-socorro. Dias antes ficara sem olfato, contudo, no alvoroço das emergências, nenhum de seus acompanhantes se lembrou de alertar isso aos que o atendiam. Também pudera, ninguém perguntou.

O enfermo não tossia, não sentia falta de ar, estava afebril e nada de escorrer algo pelo nariz. No hospital as horas passavam tensas, preenchidas por exames e avaliações. A tomografia de crânio e a radiografia de tórax estavam excelentes. Apenas o exame de urina mostrou algo errado: uma infecção urinária. Em idosos, esse transtorno pode causar confusão e sonolência, logo, o diagnóstico convenceu a médicos e aos familiares. Depois de medicado, o paciente até melhorou um pouquinho, ao menos a maioria assim achou.

Infelizmente, aquela débil melhora, precocemente celebrada como o prenúncio de uma rápida recuperação, decepcionou. O paciente continuava confuso e mais sonolento. Dois dias após os primeiros exames, sua esposa e filho começaram a tossir, perderam olfato e paladar. Preocupados, alertaram aos médicos que cuidavam do “nono” sobre o que sofriam. Fazer o diagnóstico ficou fácil, os três estavam com Covid-19.

A perda olfatória pode ser seu único sintoma da Covid-19. Exames apontam como essa deficiência sensitiva ocorre. Por exemplo, imagens obtidas através de ressonância magnética evidenciaram alterações nos bulbos olfatórios de pessoas com Covid-19 que perderam o olfato. Nenhuma alteração nasal relevante foi descoberta. O bulbo olfatório é uma estrutura intracraniana, quase um apêndice cerebral, especializada em processar os sinais moleculares codificadores de odores.

Acredita-se que o Sars-CoV-2 siga uma rota específica até acometer o cérebro. Primeiro atinge o nariz, em seguida segue o nervo do olfato até se instalar no bulbo olfatório. A partir deste ponto, ganha o cérebro e pode devastá-lo ou nada causar. Não é necessária uma forma pulmonar grave da doença para que o vírus tenha o encéfalo como destino.

Podemos finalmente raciocinar. O vírus infectou o nariz do nosso paciente, sem causar sintomas até então. Ascendeu pelo nervo da olfação e depois bloqueou o funcionamento do bulbo olfatório, assim provocou a primeira manifestação, cujo nome é anosmia. Alguns dias a seguir, espalhou-se por algumas áreas cranianas, a causar a sonolência e a confusão mental. Para compreender melhor o que acontecia, nosso paciente foi submetido a uma ressonância de crânio, exame mais preciso do que a tomografia, já analisada.

Havia medo de que o Sars-CoV-2 provocara uma isquemia cerebral, a causar tanta sonolência e confusão. Porém o exame revelou uma inflamação em áreas encefálicas muito próximas ao bulbo olfatório, os córtices entorrinal e orbitofrontal, centros da memória e emoções. A imagem era feia, mas não trazia maus agouros, já que com ela complicações muito piores foram descartadas. Não existia destruição de partes cerebrais, logo, as alterações vistas poderiam desaparecer.

Bem tratado, o homem sobreviveu. Recupera-se, mas diz que sua memória não está nada bem, sente fadiga, dor de cabeça e está muito aborrecido, pois seu olfato não retorna. Todos ao seu redor preocupavam-se com as consequências do “passeio” viral pelo cérebro do senhor convalescente. Como será, então, daqui por diante?

Não é incomum que curados da Covid-19, incluindo aqueles que sofreram formas bem leves da doença, tenham queixas persistentes, como as de nosso conhecido avô. Esses transtornos duradouros têm certa predileção por mulheres saudáveis, em idade próxima aos 40 anos.

Ao passar pelo cérebro, é possível que ao menos em algumas pessoas o vírus provoque desregulações inflamatórias, que continuam mesmo depois da extinção viral corpórea. Essa talvez seja a explicação de certas consequências tardias após a infestação cerebral pelo Sars-CoV-2. Ao que parece, são distúrbios perturbadores, mas transitórios. Para os sobreviventes, é bem provável que o pior já passou.

Referências:

Coolen, T. et al. Early postmortem brain MRI findings in COVID-19 non-survivors. Neurology. October 06, 2020; 95 (14) https://doi.org/10.1212/WNL.0000000000010116

Strauss , SB. Lantos LA. Olfactory Bulb Signal Abnormality in Patients with COVID-19 Who Present with Neurologic Symptoms American Journal of Neuroradiology October 2020, 41 (10) 1882-1887; DOI: https://doi.org/10.3174/ajnr.A6751

Davido B et al., PosteCOVID-19 chronic symptoms: a postinfectious entity? Clinical Microbiology and Infection, https://doi.org/10.1016/j.cmi.2020.07.028

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