Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Desvendando a mentira e os mentirosos

É fascinante a ciência sobre a mecânica da mentira, já que mentir é um pilar do comportamento humano

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Uma mulher hospitalizada agradece o médico por, finalmente, ter dormido bem. Há semanas, as noites pareciam intermináveis, uma tortura causada por horríveis dores de cabeça. Ela sofria de um incomum tipo de câncer, muito agressivo. O clínico explicava a ela a causa da dor: células cancerígenas atingiram as meninges, a membrana do invólucro cerebral. O tratamento, embora paliativo, aplacara o terrível martírio.

Após os agradecimentos sinceros, a senhora cedeu à ânsia e perguntou: doutor, vou me curar?

O profissional sabia que a doença nunca havia deixado de avançar, sem trégua. Ele cogitou dizer a ela que a invasão meníngea, naquele específico tipo de câncer, é uma complicação terminal. Daria um conselho para ela se preparar para a morte e deixar de se preocupar com frivolidades. As quimioterapias, a partir daquele ponto, lhe causariam apenas efeitos colaterais. Estava no momento de priorizar medidas para alívio e conforto. Mas, diferentemente disso, firmou a voz para disfarçar o breve vacilo e disse: sim!

O médico inibiu, de vez, seu flerte com a sinceridade.

Mentir ao dizer, de prontidão, que há cura para a doença sabidamente incurável demandou menos esforço mental do que seria alertar a paciente sobre o destino certeiro, tão próximo. Mas, se a enferma prosseguisse questionando criticamente sobre os planos terapêuticos e as reais chances de êxito, persistir de forma mentirosa exigiria muito mais trabalho.

Pinóquio, personagem conhecido por ficar com o nariz maior ao mentir - Adriano Vizoni/Folhapress

Primeiro porque mentir contraria o processo intuitivo dominante, que é dizer a verdade não inventada. Falar mentiras demanda a inibição deste instinto.

Segundo porque mentir requer outros complicados recursos cognitivos, como dominar as emoções, inibir palavras ou gestos contraditórios, planejar e inferir sobre os pensamentos e sentimentos de quem recebe a mentira.

Terceiro porque para mentir deve-se manter a cara-de-pau. Nós, humanos, possuímos uma tendência psíquica, a ilusão da transparência, que faz um indivíduo acreditar que suas emoções são claramente percebidas por outros. Consequentemente, as pessoas se dispõem a crer que suas verdades iluminam caminhos, enquanto suas mentiras são facilmente detectáveis. Mesmo assim, alguns floreiam inverdades muito bem de forma a amenizar a contínua expectativa de ser desmascarado.

Portanto, enganar é uma ação vinculada à atenção tensa. Desta forma, não é surpreendente que, ao mentir, nossas frases são gramaticalmente mais corretas, produzidas mais lentamente do que quando dizemos a verdade. E, se somos interrompidos por distrações, nosso fluxo de mentiras cai.

É fascinante a ciência interessada na mecânica da mentira, já que mentir é um pilar do comportamento humano. Mas, além de equalizar curiosidades, ela pode criar mecanismos práticos, cujo objetivo é desmascarar mentirosos. O uso de inteligência artificial poderá um dia detectar microexpressões faciais exclusivas dos quem faltam com a verdade. Entretanto, os presentes exames de ressonância funcional já conseguem dedurar os ardilosos trapaceiros. Através desses recursos, sabemos que ao contarem lorotas sobre seu passado, as pessoas utilizam áreas cerebrais envolvidas em resgatar memórias recentes. Se narrassem verdades, utilizariam as partes cerebrais responsáveis por recordar memórias tardias.

Outro ponto de interesse científico é a identificação de perfis psíquicos dos mentirosos muito convincentes. Os resultados são interessantes: mente melhor o inteligente, o extrovertido e também o benevolente. Ao que parece, detentores da tríade psicopatia, maquiavelismo e narcisismo mentem melhor do que os de personalidade sombria.

Pessoas mentem por diferentes razões, frequentemente para atender objetivos egoístas e para construir uma imagem positiva. Ou às vezes mentem com um bom propósito. O médico pode ter mentido para poupar a paciente da dura realidade e para dar mais tempo a ela de se confortar nas esperanças. Ou mentiu para insinuar que ele é a solução derradeira para um problema que outros não foram capazes de equacionar.

Referências:

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