Os milênios percorridos pela evolução deram ao olfato, o mais ancestral dos sentidos, fortes conexões com os centros cerebrais da memória e comportamento. No entanto, a complexidade da vida cresceu e a rica experiência visual fez o olfato parecer um sentido fraco nos humanos.
Assim pensaram os primeiros neurocientistas e, sem muita crítica, classificaram o homem como animal quase anósmico. Para eles, o olfato era algo bestial, o oposto do necessário para a “racionalidade espiritual”.
Erraram. O olfato humano é excelente. Não discriminamos bem os odores de urina em postes, mas discernimos diferentes tipos de perfume de um mesmo alimento. Nossos narizes até detectam produtos voláteis compostos por um ou dois átomos.
A partir dos anos 1960 narrativas prodigiosas sobre a olfação foram publicadas. Incluindo a história de uma jovem cega, trabalhadora de lavanderia, capaz de separar as roupas já limpas de seus clientes, cheirando-as. E também o caso da senhorita Helen Keller, igualmente cega, mas hábil em reconhecer pessoas pelo cheiro. Após avaliação, descobriu-se nada de especial no olfato dela. Helen apenas aprendera a valorizar melhor os odores.
Cheiros também influenciam relações interpessoais. Parece improvável, mas pessoas corretamente intuem, influenciadas por odores corporais, sobre a personalidade de outras. Fragrâncias humanas naturais surgem nas várias combinações das substâncias da pele, saliva, urina e genitálias. Pelos pubianos e axilares têm o papel biológico de retê-las. Todos esses odores são influenciados por neurotransmissores e hormônios.
Serotonina e dopamina modulam várias funções fisiológicas, inclusive a intensidade de suor. A testosterona modifica a função de glândulas epiteliais. Essas moléculas biológicas também modulam agressividade, ansiedade, aproximação social e dominância. Em outras palavras, regulam traços de personalidade e, em última instância, dos aromas produzidos pela degradação do suor na pele. Com essas premissas, a psicóloga Agnieska Sorokowska fez voluntários cheirarem camisetas de desconhecidos e palpitarem em seguida sobre a personalidade de quem usou aquela peça. Os acertos foram significativos.
Podemos também farejar variabilidade genética. Nossos genes codificam o complexo principal de histocompatibilidade (MHC na sigla em inglês), um arranjo de aminoácidos que permite ao sistema imunológico reconhecer microrganismos invasores.
O biólogo Manfred Milinski, em estudo com imagens do funcionamento cerebral, demonstrou que nós humanos conseguimos detectar as diferenças em odores corporais causadas por acréscimos de aminoácidos do MHC. O significado prático dessa pesquisa é a revelação da nossa capacidade em perceber MHC diferentes dos próprios, logo, “sentimos” genes distintos dos pessoais. Temos, desta forma, um meio inconsciente de evitarmos parceiros sexuais com material genético semelhante ao nosso, por conseguinte, reduzimos os riscos das conjunções consanguíneas.
Experimentos recentes mapearam os efeitos de odores no funcionamento cerebral. Então, descobriu-se que estímulos olfativos excitam diretamente áreas cerebrais relacionadas com emoções, antes mesmo de ativarem regiões nervosas especializadas em trazer à consciência o significado do cheiro. Ou seja, odores podem causar emoções mesmo antes de serem interpretados, avaliados e catalogados pelo cérebro. Portanto, “isso fede” vem antes do “isso cheira a meias usadas”.
O vírus Sars-CoV-2 pode atrapalhar tudo isso, pois frequentemente causa anosmia, a incapacidade de sentir odores. Já que olfato e paladar são constantemente confundidos, os infectados, muitas vezes reclamam de incapacidade para perceberem gostos.
Pessoas com anosmia estabelecida sofrem por perderem o prazer ligado à alimentação, sentem-se mais vulneráveis por não conseguirem detectar alimentos estragados ou gases prejudicais. Também são mais ansiosas, inseguras quanto à higiene pessoal e tendem ao isolamento social. Não sabemos ao certo se a anosmia provocada pela Covid-19 é sempre reversível, mas é o que parece, felizmente.
Referências :
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