Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Luciano Magalhães Melo

O limite do humor na ciência, rezas que curam e o conselho de se evitar cirurgiões aniversariantes

Revista BMJ costuma publicar pesquisas, em tese, mais bem-humoradas no fim de ano

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A revista BMJ (British Medical Journal) é um dos periódicos médicos mais importantes do mundo. Um artigo de 1982 que conta a história de uma “ressuscitação” bem sucedida no ano de 1650 estreou uma tradição: todo final de ano o BMJ rompe momentaneamente com seu retrospecto sisudo. O espaço é ocupado por temas nem tão sérios, embora persista a obediência às rigorosas normas acadêmicas.

Temos, portanto, um espírito festivo, cujo âmago é a originalidade. Desta forma, sátiras e o bom humor são bem vindos pelos editores, mas artigos enganosos ou falsificados são recusados. Essa é a oportunidade para pérolas virem à tona, como a pesquisa sobre os efeitos colaterais de engolir espadas, e os riscos de chacoalhar o pescoço ao ouvir música heavy-metal.

Mas brincadeiras frequentemente resultam em polêmicas. Leonard Leibovici trouxe controversa em seu artigo: “Efeitos da oração intercessora remota e retroativa em desfechos dos pacientes com infecção da corrente sanguínea: ensaio clínico randomizado”, em 2001.

Médico segura a mão de paciente
Médico segura a mão de paciente - Patrick T. Fallon/AFP

O autor conduziu uma experiência cujo primeiro passo foi identificar todos pacientes que sofreram infecção sanguínea em um hospital israelense. Após, os indivíduos foram distribuídos em dois grupos. Uma pessoa, distante do hospital, recebeu uma lista com o primeiro nome de todos os membros de apenas um dos grupos. Ela fez uma breve oração para todos daquele conjunto, a solicitar o bem-estar e recuperação total de seus integrantes. As pessoas cujos nomes não estavam na lista, ficaram sem receber as boas intenções.

Por fim, as informações médicas registradas sobre todos os pacientes foram avaliadas. A surpresa: menos mortes ocorreram no conjunto dos doentes atendidos pela reza. Detalhe, a prece aconteceu entre 4 a 10 anos após a infecção, quando as intervenções clínicas já estavam finalizadas.

O objetivo de Leibovici não foi fazer os leitores aceitarem piamente ser a reza eficaz até mesmo para mudar o passado. A intenção era outra: demonstrar que um trabalho científico de premissas absurdas pode chegar a qualquer resultado. Mas o artigo foi tratado como sério por alguns, o que garantiu citações até mesmo pela biblioteca Cochrane, confiável instituição da difusão da medicina baseada em provas.

Outros autores, sabe-se lá se bem intencionados ou não, utilizaram a “tese” de Leibovici para transferir a credibilidade do BMJ para teorias próprias e estapafúrdias. Assim a ideia do escritor Stephan Schwartz de que “processos básicos da vida dependem de transferências quânticas para épocas anteriores” ganhou um verniz científico. Para a formulação dessa alegação, a ironia existente nos textos da edição natalina foi completamente ignorada.

Por poder respaldar baboseiras, críticos a Leibovici advogam que o artigo dele deve ser banido ou ser antecedido por algum alerta a revelar todo o sarcasmo. O autor se defende, afirmando que sua pesquisa seguiu rigor científico, portanto não está errada. Ressalva que a conclusão absurda é fruto de premissa absurda. Para o bom cientista é pré-requisito não ser ingênuo.

Felizmente a tradição bem humorada segue. Os textos carregados de originalidade continuam a ser publicados em dezembro, ano a ano. Em 2020 já temos matérias para refinar o nosso humor e nossa crítica.

Um dos estudos desse ano revelou que pacientes completamente anestesiados, com fones nos ouvidos a transmitirem boas sugestões e palavras otimistas, terão menos dores após a cirurgia. Em outro artigo, um grupo de cirurgiões demonstrou que macacos decidem como ortopedistas sobre o melhor tratamento para um tipo muito complicado de fratura, em que até hoje não se definiu consenso terapêutico.

Porém um dos estudos publicados deveria estar em uma edição séria do BMJ, pois evidenciou que pacientes operados em urgência por médicos que aniversariam no dia da cirurgia têm riscos maiores de morrer. Constatação que não deve ser confundida com brincadeira.


Referências:
BMJ 2020;371:m4381 http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m4381
BMJ 2020;371:m4429 http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m4429
BMJ 2020;371:m4284 http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m4284
BMJ 2001;323:1450–1 DOI: 10.1136/bmj.323.7327.1450
Sci Eng Ethics (2015) 21:1537–1549 DOI 10.1007/s11948-014-9619-8
Explore 2010; 6:227-236. DOI: 10.1016/j.explore.2010.04.008
Br Med J (Clin Res Ed) 1982; 285 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.285.6357.1792
https://www.bmj.com/about-bmj/resources-authors/article-types/christmas-issue
https://www.discovermagazine.com/health/christmas-death-and-surgeons-birthdays
https://www.cochranelibrary.com/cdsr/doi/10.1002/14651858.CD000368.pub3/full

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.