Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

O medo da demência e formas de evitá-la

Pesquisa aponta que atividades intelectual e social podem proteger contra deterioração cognitiva

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E., alcunhado desta maneira em referência à primeira letra de esquecimento, explicava ao neurologista como sua memória estava ruim. Há poucos meses frequentemente se esquecia qual objeto procurava dentro de uma gaveta já revirando seu conteúdo. Também, era comum não se lembrar do que fazia em cômodos de sua casa, tão logo pisasse ali.

E. tentava contemporizar esses enganos. Mas, um fato o abalou muito. Durante uma conversa com um amigo distante, deixou de se concentrar nas palavras que lhe eram ditas. Seu esforço almejava recordar o nome do interlocutor. Julgou essa falha muito severa, pois há um ano estivera na festa de casamento daquele conhecido.

O homem atormentado acreditava estar com doença de Alzheimer ou algo parecido em fases iniciais. Ideia persistente, ainda que estivesse consciente de que seus equívocos eram ocasionais e reversíveis. Julgava que sua memória rumava para a extinção.

Pesquisador(a) corta cérebro com faca
Erros cognitivos são intrínsecos à essência humana - Yves Herman/Reuters

Se essa previsão estivesse correta, ele sabia muito bem o que enfrentaria. Havia acompanhado o ocaso da memória de sua sogra, desde as primeiras inconsistências. Testemunhara a idosa esquecer de suas próprias referências biográficas e morrer para ela mesma. Esquecida do que fora um dia, experimentou uma morte antes da morte biológica. O genro temia ter destino parecido, requisitava algo para escapulir daquela sina.

O neurologista o tranquilizou ao explicar não haver nenhum sinal precoce de demência. Pois, a despeito dos lapsos E. explicava em detalhes suas rotinas e recordava bem as circunstâncias de seus enganos. Alguém com alguma doença causadora de demência não reavivaria tão bem o passado recente. Seus sintomas eram frutos de transtorno cognitivo funcional, causado por fatores psicológicos.

Erros cognitivos são intrínsecos à essência humana. No entanto, sofrimentos psíquicos aumentam a probabilidade de acontecerem. Nosso homem enfrentava sérios problemas pessoais e no trabalho, dormia pouco, se alimentava mal. Seus deslizes agravavam seu temor quanto à doença de Alzheimer e aumentavam suas aflições.

Convencido de que, naquele momento, estava livre da demência, sua mente inquieta atendeu a uma nova preocupação. E. beirava os 60 anos; como seria o seu futuro? Se na velhice for afetado, como será medicado? Poderia fazer algo para evitar a demência?

Até o presente momento, não existe tratamento capaz de interromper, suavizar ou reverter as degenerações cerebrais causadas pela doença de Alzheimer ou por outras formas de demências. Um problema crítico para uma condição de saúde que se alastra rapidamente: projeções indicam que a população mundial de dementes triplicará até 2050, partindo dos cerca de 50 milhões existentes atualmente.

O envelhecimento populacional contribui para essas previsões alarmantes. Porém, catastrofismo à parte, algumas regiões contrariam as expectativas de que o aumento da média de idade de um grupo geográfico sempre eleva a incidência das demências. Na Europa, EUA e Coreia do Sul há uma redução de incidência das demências.

O melhor controle dos fatores de risco para doenças vasculares, como infarto cardíaco e isquemia cerebral, operou para esses decréscimos. Mas não é apenas o cuidado com a circulação sanguínea que reduz risco de demência.

Uma metanálise recentemente publicada na revista Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry ratificou fortes evidências de que, além dos grandes agressores aos vasos sanguíneos, como diabetes e hipertensão arterial, a depressão e traumas cranianos elevam chances de desenvolvimento de demência. Ao mesmo tempo, estudar por mais anos, prolongar atividades intelectual e social, compõe ações que reduzem os riscos desse problema. O mesmo estudo aponta que, possivelmente, não fumar, dormir adequadamente e praticar atividade física protegem contra a deterioração cognitiva.

Portanto, medidas que preservam a saúde dos vasos sanguíneos e atitudes de bem-estar reduzem os casos de demências em algumas regiões do mundo. Vale seguir o exemplo.

Referências:

1-Yu J, Xu W, Andrieu S, et al. Evidence-Based prevention of Alzheimer’s disease: systematic review and meta-analysis of 243 observational prospective studies and 153 randomized controlled trials. J Neurol Neurosurg Psychiatry 2020;91:1201–9.

2- Park JE, Kim BS, Kim KW, et al. Decline in the incidence of all-cause and Alzheimer’s disease dementia: a 12-year- later rural cohort study in Korea. J Korean MedSci 2019;34:e293.

3- Catherine Pennington, Margaret Newson, Amrit Hayre,Elizabeth Coulthard1,2 Functional cognitive disorder: what is it and what to do about it? Pract Neurol 2015;15:436–444. doi:10.1136/practneurol-2015-001127

4 Livingston G, Sommerlad A, Orgeta V, et al. Dementia prevention, intervention, and care. Lancet 2017;390:2673–734.

5- Nós humanos às vezes somos histéricos - 25/09/2020 - Luciano Melo

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