Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Devemos abusar do efeito placebo contra a terrível enxaqueca?

O desejo e a expectativa por alívio influenciam como a dor é sentida e como é aplacada

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Virtualmente, todos nós humanos sofreremos ao menos uma crise de cefaleia durante a vida. Mas muitos de nós não teremos o privilégio de receber esse inconveniente apenas ocasionalmente. Ao contrário, alguns a enfrentam semanalmente e, não raro, todos os dias.

Pior: cefaleias por vezes despontam com um usual lastro de mal-estares. Por exemplo, vômitos, que para quem os têm, são intermináveis. Ou as estranhas alucinações das auras provocadas por enxaquecas: aparições de traços ou pontos luminosos, coloridos ou não. Até mesmo a sensibilidade a estímulos inofensivos podem virar um transtorno: luz, barulho, cheiros e movimentos incomodam muito.

Diferente de muitas dores que apontam algum dano em nosso corpo, a maioria das dores de cabeça não são ocasionadas por nenhuma lesão. Não existem doenças como as dores de cabeça.

Crises de enxaquecas geralmente começam na adolescência e continuam por décadas. Durante seus ataques intensos, as cefaleias e seus penduricalhos arrasam disposições.

Vamos à matemática simples para entender a dimensão desse problema. Não é incomum alguém sofrer sete ataques por mês de enxaqueca, por vinte anos. Em sua vida, serão 1.920 dias afetados, ou seja, pouco mais de cinco anos estarão perdidos, às prestações. Esse é o tempo que alguns tratamentos contra câncer almejam garantir de sobrevida. A enxaqueca, deveras prevalente, ostenta o posto de ser uma das causas mais importantes de incapacidade mundo afora.

Homem com a mão na cabeça, aparentemente com dor
Diferente de outras dores que apontam danos no corpo, a maioria das dores de cabeça não são causadas por nenhuma lesão - Kurhan/AdobeStock

Tamanha relevância não foi correspondida até há poucos anos, pois o arsenal farmacológico contra a enxaqueca era tão modesto que nem deveria ser chamado de arsenal. Esse cenário mudou recentemente quando uma nova geração de medicamentos chegou ao mercado. As novidades são anticorpos que bloqueiam especificamente os mecanismos bioquímicos iniciais da enxaqueca. Assim, prometem maior eficácia em relação às drogas antigas e menos efeitos colaterais. Claro, seus preços não são módicos.

Pacientes que receberam aplicações de anticorpos anti-enxaqueca tiveram menos crises de enxaqueca do que outros que receberam placebo, por isso agências reguladoras autorizaram a comercialização desses remédios. Efeito placebo é influenciado pelo contexto em que o tratamento é fornecido. O efeito terapêutico, em oposição, deriva-se do modo de ação da droga.

A dor não é um produto apenas das transmissões neurais ou dos sinais químicos, fatores subjetivos também a moldam. Logo, o desejo e a expectativa por alívio influenciam muito como a dor é sentida e como é aplacada. Medidas que tornam contextos mais apelativos, como procedimentos invasivos, rótulos interessantes, podem fomentar boas expectativas, e consequentemente favorecer o efeito placebo.

Os anticorpos contra enxaqueca são produtos caros, vêm em frascos bem trabalhados e são novidades injetáveis, mais invasivas do que os comuns comprimidos. Essas características podem alavancar o otimismo sobre suas ações. Portanto, mesmo agindo especifica e bioquimicamente contra a enxaqueca, podem desencadear efeito placebo.

Essas premissas todas motivaram o neurologista britânico Raeburn Forbes a revisar sistematicamente os melhores estudos clínicos que incluíram o uso das modernas formulações. Depois de todo trabalho, ele e sua equipe concluíram que foi o efeito placebo e não as propriedades bioquímicas dos anticorpos que beneficiaram sessenta e seis por cento dos pacientes que, de fato, receberam os anticorpos.

Os custos anuais destas novas medicações podem superar doze mil reais, exorbitantes para nossos combalidos sistemas de saúde. Essa dinheirama até pode ser encarada como investimento e não despesa, caso de fato, poupe anos de vida. No entanto, se Forbes estiver correto, devemos criar contextos para aproveitarmos melhor o efeito placebo e, então, poupar recursos e reduzir os riscos de efeitos medicamentosos indesejáveis.

Referências:

Forbes, R. B., McCarron, M. & Cardwell, C. R. Efficacy and contextual (placebo) effects of CGRP antibodies for migraine: systematic review and meta-analysis.

Headache https://doi.org/10.1111/head.13907 (2020).

Kaptchuk, T. J., Hemond, C. C. & Miller, F. G.Placebos in chronic pain: evidence, theory, ethics, and use in clinical practice. BMJ 370, m1668 (2020).

Kam- Hansen, S. et al. Altered placebo and drug labeling changes the outcome of episodic migraine attacks. Sci. Transl Med. 6, 218ra5 (2014).

GBD 2016 Headache Collaborators. Global, regional, and national burden of migraine and tension-type headache, 1990-2016: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016.Lancet Neurol. 2018;17:954-976.

Speciali JG, Peres M, Bigal ME. Migraine treatment and the placebo effect. Expert Rev Neurother (2010) 10:413–9. doi:10.1586/ern.10.8

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