Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Coronavírus terrorismo

As doenças vasculares de carona no terrorismo e na Covid-19

Cientistas viram um aumento de casos graves de acidente vascular cerebral isquêmico em Christchurch após ataque terrorista; a Covid-19 pode causar algo similar?

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Atos terroristas provocam claros e imediatos danos —e fazem vítimas nem sempre diretamente afetadas pela violência. Isso é o que sugerem cientistas da Nova Zelândia em um artigo publicado recentemente na revista Neurology.

Os pesquisadores identificaram um pontual, embora expressivo, aumento de casos graves de acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI) na cidade neozelandesa de Christchurch. O local foi cenário do massacre de 51 mulçumanos, perpetrado por Brenton Tarrant. Outras áreas neozelandesas também registraram elevação, ainda que mais modestas, de casos de AVCI.

Um AVCI grave é uma doença vascular causada pelo fechamento súbito de uma importante artéria que nutre uma grande área encefálica. Essas obstruções, na maioria das vezes, surgem por complicações repentinas em estreitamentos gordurosos preexistentes nas artérias ou por alguma doença cardíaca. Sim, o sangue dentro de um coração adoentado, incapaz de bater adequadamente, move-se tão lentamente a ponto de se tornar um coágulo. Esse último, expulso do coração por uma contração, ganha a circulação e pode ocluir um vaso sanguíneo cerebral.

A base fisiológica para o ato terrorista criar um ambiente circulatório propício para novos AVCIs não está completamente elucidada. Contudo, temos algumas hipóteses. Sabemos que uma tempestade de emoções aumenta a noradrenalina, molécula que em excesso eleva riscos de arritmias cardíacas. Esses distúrbios cresceram sensivelmente em hospitais próximos às torres do World Trade Center logo depois do atentado que as derrubaram em 11 de setembro de 2001. Alguns desses descompassos dos ritmos cardiológicos, ainda que transitórios, elevam o risco de AVCI. Especula-se que essas alterações possam ter se elevado também na cidade neozelandesa.

Outra teoria foi alicerçada pelo grupo de pesquisa em psicobiologia da University College London, que demonstrou que o estresse psicológico extremo incrementa excessivamente a atividade de agregação das plaquetas, mecanismo central para a formação dos coágulos que, se volumosos, interrompem o fluxo arterial.

A elevação de casos de AVCIs após o atentado em Christchurch, mais os estudos anteriores sobre a relação entre estresse e doenças vasculares, compõem evidencias sobre a existência de outra síndrome, discreta, excitada por emoções negativas e intensas. Essa outra síndrome possui raio de ação maior e um pavio mais longo.

É tentador imaginar que a outra síndrome coexiste em paralelo às ações infecciosas do coronavírus Sars-CoV-2. Ora, a pandemia atual obriga grupo de indivíduos a vivenciarem tragédias, assim como também provoca um ruído de alarme constante, que por vezes, amedronta a distância. Não obstante, transtornos psíquicos causados pela pandemia podem ser comparados aos distúrbios emocionais ocasionados por terrorismo, ao menos em alguns locais. Portanto, a outra síndrome pode piorar o número de óbitos ou de sequelas causadas pela atual crise sanitária.

Ainda não podemos afirmar certeiramente que a Covid-19 aflige a saúde das pessoas da mesma maneira que o massacre de Christchurch. Entretanto, temos à disposição publicações que revelam haver mais mortes causadas por doenças cardiovasculares, como infarto agudo do miocárdio e AVCI, desde o início da pandemia nos EUA e no Reino Unido.

Esse aumento de óbitos tem outras possíveis razões, diferentes das dos distúrbios circulatórios causados pelo estresse psíquico. O neurologista que aqui escreve e outros tantos colegas já vimos acontecer, várias vezes, indivíduos deixarem de buscar atendimento médico por temerem sair de casa e se infectar, atitude que agrava algumas doenças.

Outro ponto crítico: hospitais saturados de doentes, com os recursos escasseando, podem perder a eficácia em realizar diagnósticos e tratamentos adequados.

Sem dúvida, a Covid-19 constrói caminhos diversos para prejudicar a saúde, inserindo uma síndrome dentro de outra síndrome.

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