Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

O sono, esse misterioso

Teorias apontam que o sono pode ter surgido como uma forma de proteção ou de prazer

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Podemos resistir ao sono por horas, mas, em algum momento, quiçá no instante em que estar acordado seria a salvaguarda da nossa vida, desabaremos adormecidos, imóveis e vulneráveis. Felizmente, depois de entregues, teremos a recompensa: uma boa noite de sono restaura o ânimo para o próximo dia. Então é isso? Dormimos para descansar?

Embora tenha inegável efeito restaurador, o sono não é uma forma eficaz de descanso. Fosse assim, teríamos um considerável ganho energético dormindo. Na prática, há economia de apenas 110 calorias para aquele que dormiu à noite em relação ao outro que permaneceu em claro. Essa simples diferença estará desfeita se comer uma coxa de frango. Certamente, a natureza encontraria outra forma tão eficaz de recuperar essa pequena energia sem desprezar a interação com o ambiente, mas, como se vê, preservou o sono ao longo de milhares de anos da evolução.

Alguns pesquisadores acreditam que esse capricho biológico tenha surgido na Terra com uma única função e, depois, tenha conquistado várias atribuições. Outros cientistas sugerem que o sono seja um traço sem valor adaptativo, que emergiu apenas como um subproduto de alguma misteriosa ação verdadeiramente útil, ainda por ser definida.

O pesquisador Russell Foster, do laboratório de neurociências circadianas da Universidade de Oxford, acredita ter sanado essas questões. Para ele, dormir surgiu como proteção. Animais adormecidos se poupam de enfrentar os perigos da vigília. A busca de alimentos e a competição por território ou por sexo são as atividades que expõem os seres vivos aos verdadeiros riscos, muito superiores aos causados por estar em repouso. Abrigados e imóveis, estamos seguros.

Casal dormingo sob o sol
Couple sunbathing on summer vacation on the beach with the man in foreground - Antonioguillem/Stock.adobe.com

À primeira vista, esse conceito parece ser muito esdrúxulo, contudo, há fatos a seu favor. Por exemplo, o cérebro adormecido processa informações ao redor. Estudos revelaram que, para acordar alguém, o significado do estímulo é mais importante do que a sua intensidade. É por isso que palavras com significado, o choro do seu bebê ou a escuta do próprio nome provocam o despertar mais facilmente que palavras sem sentido, o choro de outro bebê ou a escuta do nome de outra pessoa. O cérebro processa sons e escolhe as informações adequadas que levam ao despertar.

A cientista Masako Tamaki descobriu ainda mais. Ela mediu a atividade elétrica cerebral de pessoas enquanto dormiam em um lugar não habitual. Tamaki notou que o hemisfério cerebral esquerdo não se aprofundava tanto no sono como o hemisfério direito e, assim, permanecia mais vigilante aos acontecimentos ao redor. A cientista também percebeu que a atividade cerebral no sono volta à simetria caso o indivíduo durma em mais noites no novo ambiente. A conclusão é que as metades cerebrais adormecem assimetricamente para preservar certa vigilância chefiada pelo lado esquerdo do encéfalo, até a adaptação ao novo abrigo. Mantemos uma relativa vigília noturna enquanto acostumamos ao novo lugar.

Então, o sono nos força ao repouso, mas cuida para que mantenhamos uma atenção difusa ao espaço. Enquanto o organismo dorme, o cérebro, por meio de processos inconscientes, escolhe qual estímulo deverá atingir a consciência e se necessário, imediatamente despertar. Já acordados, nós e demais mamíferos, atraídos por saliências, estreitamos nossa atenção a um ponto e esquecemos outros. Por exemplo, um animal muito atento ao alimento, reduz sua fiscalização a outros lugares, um perigo em ambientes naturais.

Há, porém, algo não considerado por Foster: a forte ligação do sono ao prazer. Para os pesquisadores espanhóis Rial e Canellas, é o prazer a força primordial que nos obriga a dormir. Os cientistas partem da constatação de que o sono começa quando perdemos o prazer de estarmos acordados e termina quando dormir deixa de ser agradável. Argumentam também que uma das piores formas de torturar alguém é a privação do sono.

Rial e Canellas apontam haver um regulador comum ao sono e ao prazer: a dopamina. Esse é o neurotransmissor gerente dos nossos sistemas neurológicos de recompensa, as nascentes da sensação de deleite. A sonolência emerge quando as quantias de dopamina nas regiões encefálicas encarregadas das emoções estão em menores quantias. O sono termina após a reposição dos níveis de dopamina e, então, estamos aptos para uma vigília eficiente.

Em busca do prazer ou da segurança, o organismo adormece. Dormindo realiza uma série essencial de atividades biológicas que preparam o corpo para as ameaças e os desfrutes da vigília.

Referências:

1. Foster RG. There is no mystery to sleep. Psych J. 2018 Dec;7(4):206-208. doi: 10.1002/pchj.247. PMID: 30561857.

2. Tamaki M, Bang JW, Watanabe T, Sasaki Y. Night Watch in One Brain Hemisphere during Sleep Associated with the First-Night Effect in Humans. Curr Biol. 2016 May 9;26(9):1190-4. doi: 10.1016/j.cub.2016.02.063. Epub 2016 Apr 21. PMID: 27112296; PMCID: PMC4864126.

3. Andrillon, T., & Kouider, S. (2020). The vigilant sleeper: Neural mechanisms of sensory (de)coupling during sleep. Current Opinion in Physiology, 15, 47–59.

4. Rial RV, Canellas F, Gamundí A, Akaârir M, Nicolau MC. Pleasure: The missing link in the regulation of sleep. Neurosci Biobehav Rev. 2018 May;88:141-154. doi: 10.1016/j.neubiorev.2018.03.012. Epub 2018 Mar 13. PMID: 29548930.

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