Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

A pretensão de desvendar razões escusas da mente

Ainda não sabemos como determinadas estruturas do funcionamento cerebral atuam em ambientes sociais dinâmicos e imprevisíveis

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O pronto-socorro estava lotado como sempre. Novos atendimentos renovavam a compilação de demandas, a confusão recorria a soterrar o broto de organização que, vez ou outra, parecia que iria vingar. Enfim, a rotina daquele hospital-escola.

Em uma sala um médico, ainda residente de neurologia, introduzia uma agulha na nuca de uma mulher. Desejava retirar uma amostra do líquido que banha o cérebro, pensava-se em meningite. Porém, a quietude foi maculada pela abertura da porta, e um aluno do último ano do curso de medicina adentrou como um arauto: "um homem perdeu os movimentos do lado esquerdo e não fala mais, há poucos minutos. Deve ser um caso de acidente vascular isquêmico (AVCI) agudo".

Enquanto o líquido vertia purulento, o neurologista instruía o mais jovem aprendiz para ser rápido, "adiante os preparos, para que falte apenas minha decisão para a terapia". O tratamento contra o AVCI perde a eficácia a cada minuto.

Médica observa exame neurológico em hospital - Thaís Parolin - 27.out.2005/Folhapress

Terminada a punção, o médico caminhou até a nova emergência, ainda preocupado com a mulher que atendia. Para surpresa do séquito de estudantes ao seu redor, palavras, e não remédios, fizeram o paciente levantar-se e andar: "Você de novo? Pode sair da maca." O clínico já havia examinado aquele homem em outros departamentos, a história era repetida, de uma deficiência que na verdade nunca existiu.

É um desafio compreender a razão desta cena. Portadores de certas doenças psiquiátricas acreditam possuírem incapacidades e se portam conforme a crença. Mas há os que mentem ardilosamente, por qualquer razão, como por exemplo para angariar favores de um parente compassivo. Doenças psiquiátricas também podem ser a razão de crimes. Mas, obviamente, há quem delínque por causas vis e minta.

Nos últimos trinta anos, muitas técnicas foram desenvolvidas para medir as funções, estruturas, propriedades químicas e conectividades cerebrais. Com isto, ficamos pretensiosos, conseguiremos abrir caixa preta mental e arrancar o que é o mais pessoal: crenças, motivações, intenções, capacidades e segredos? Poderemos entender as razões do homem que interrompe um atendimento à mulher com meningite, poderemos reconhecer quando criminosos mentem?

Tenha o seguinte exemplo: cem participantes são instruídos a mentir ou dizer a verdade enquanto seus cérebros são escaneados por um aparelho de ressonância funcional. A análise dos dados revela que há uma diferença estatisticamente significativa entre mentir e dizer a verdade. Faltar à verdade ativa o córtex pré-frontal dorsolateral. Parece até que temos aqui uma máquina para detectar falácias.

Entretanto, não é tão simples assim. O valor estatístico cabe ao grupo, não ao indivíduo. Pois alguns participantes ativam o córtex pré-frontal dorsolateral quando recitam verdades, e outros podem mentir à vontade sem ligar esta região cerebral.

Ainda não sabemos suficientemente bem como determinadas estruturas do funcionamento cerebral, mapeadas em experimentos controlados, atuam em ambientes sociais dinâmicos e imprevisíveis. Logo, não sabemos muito como estas determinam os comportamentos no mundo real, como violência e simulação de doenças.

Estas ressalvas não preveniram as neurociências de entrarem em tribunais, no passado recente dos EUA. Por trás desta invasão, estava o pesquisador Lawrence Farwell, ex-estudante de Harvard. Ele, a partir da premissa de que um padrão de ondas elétricas cerebrais surge milissegundos após se enxergar algo familiar, criou um aparato para detectar mentiras.

Se um acusado for de fato o culpado, leitores da atividade elétrica encefálica o denunciarão, pois provarão que houve reconhecimento visual dos objetos pertinentes ao crime, em meio a outros quaisquer. Não importa o que o réu diga, basta que olhe o que lhe é apresentado.

Mas a empolgação com a máquina da verdade passou. A comunidade científica apontou que as conclusões de Farwell surgiram em meio a erros metodológicos de pesquisa. Pior, experimentos que tentaram replicar o egresso de Harvard não confirmaram os resultados. Assim, o que restou foi uma geringonça folclórica.

A visita da neurociência aos tribunais foi fruto de uma alta expectativa, talvez inalcançável, de que poderemos ler a verdade por aparatos tecnológicos e entender as razões de difícil acesso.


Francken JC, Slors M. Neuroscience and everyday life: Facing the translation problem. Brain Cogn. 2018;120:67-74. doi:10.1016/j.bandc.2017.09.004

Bigenwald A, Chambon V. Criminal Responsibility and Neuroscience: No Revolution Yet. Front Psychol. 2019;10:1406. doi:10.3389/fpsyg.2019.01406

Poldrack RA, Monahan J, Imrey PB, et al. Predicting Violent Behavior: What Can Neuroscience Add? Trends Cogn Sci. 2018;22(2):111-123. doi:10.1016/j.tics.2017.11.003

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