Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Levanta-te e anda: os doutores Frankenstein contemporâneos

Há uma corrida científica para compreender as circuitarias cerebrais relacionadas à consciência e à vigília

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O senhor Antônio era um de nós. Gostava de se divertir e de estar com os seus. Suas habilidades, virtudes e defeitos eram comuns. Porém, ele detinha um detalhe anatômico, tal qual apenas cerca de 10% das pessoas têm. Ao invés de ter uma artéria para nutrir cada um de seus dois tálamos, Antônio possuía uma única para suprir de uma vez ambos. Essa peculiaridade passaria despercebida, não fosse a arteriosclerose dar fim a tal discrição, quando ocluiu, de súbito, o vaso sanguíneo atípico. Se apenas um dos tálamos fosse avariado, o homem teria problemas bem menores. Porém os dois irreversivelmente lesionados o deixaram em coma.

Cada um dos dois tálamos se encontra no centro cerebral. Lugar estratégico para exercer suas funções de núcleo processador do fluxo de informações, da periferia corporal para a superfície encefálica. Ou em mais genérica explicação, o aparato talâmico capta dados visuais, auditivos, táteis ou de outras modalidades sensoriais, arranja-os e os retransmite para a camada mais externa de nosso cérebro, momento final da emersão da consciência. O tálamo também faz a regulação do ciclo sono e vigília.

Sem seus dois tálamos nada mais acordava Antônio.

Todo o restante do cérebro continuava normal. Redes neurais intactas aguardavam o gatilho talâmico, para trazerem a mente de Antônio, novamente ao seu corpo. As grandes consequências de duas pequenas lesões inquietavam a equipe hospitalar então responsável pelo paciente.

Foto de Frankenstein, com grande sombra ao fundo
Frankenstein (1931), em adaptação da famosa criatura de Mary Shelley, interpretada por Boris Karloff - Reprodução

Um dos médicos recordou de uma publicação científica de 2007, cujo tema era uma intervenção realizada no cérebro de um homem que, há 6 anos, sofrera um grave traumatismo encefálico. Desde então, ele se tornara incapaz para qualquer atividade.

Essa pessoa vivia em uma condição semelhante, mas não exatamente, ao que modernamente denominamos como síndrome de vigília arresponsiva (SVA), antes entendida como estado vegetativo permanente.

Quem está em SVA não tem consciência de si e tampouco do ambiente. Mas ele, eventualmente, demonstrava essas percepções, interagindo com sinais corporais sutis. Dava, portanto, sinais claros de ainda ter redes cerebrais residuais. Uma equipe de médicos acreditou que essas redes poderiam ser alvos de alguma ação terapêutica bem direcionada. Essa hipótese foi testada e eletrodos, ligados a uma pequena bateria, foram implantados cirurgicamente nos talámos do paciente.

Depois da neurocirurgia, o paciente conseguiu controlar melhor seus membros, passou a mastigar os alimentos e conquistou discreto ganho para se comunicar. Infelizmente não existem mais publicações para nos informar sobre as consequências do procedimento no longo prazo. Não sabemos se após a cirurgia, o homem alcançou alguma independência. O tratamento, no entanto, foi repetido em outros pacientes, mas os resultados foram ruins.

Entretanto, dispositivos eletrônicos já fazem parte do arsenal médico. Estimuladores implantados ajudam indivíduos com doença de Parkinson a se movimentarem melhor, interfaces entre cérebro e computadores já auxiliam pessoas a moverem membros robóticos, substitutos dos amputados. Há uma corrida científica em que o final é a compreensão das circuitarias cerebrais correlacionadas com nossa consciência e vigília.

Com esse conhecimento em mãos, talvez uma maquininha acordaria o seu Antônio.

Mas vale lembrar que a medicina é bruta, objetiva e pouco romântica. Nem espere um desfecho hollywoodiano.

Acordar alguém do coma, do estado vegetativo ou de estado minimamente consciente, será uma grande glória da humanidade, se tudo der certo. Afinal corremos o risco de trazer a consciência ou o despertar de alguém para suas sequelas permanentes, comuns aos que sofreram danos cerebrais graves. Poderemos aumentar a atenção à dor e fomentar distúrbios psicológicos, antes quiescentes.

Enquanto a equipe hospitalar planejava compreender se poderia replicar algumas das ações do estudo de 2007 para acordar Antônio, ele involuntariamente encerrou as discussões. Morreu no outro dia de infarto cardíaco.

Referências:
1-Vanhoecke J, Hariz M. Deep brain stimulation for disorders of consciousness: Systematic review of cases and ethics. Brain Stimulat. 2017 Nov 1;10(6):1013–23.
2. Schiff ND, Giacino JT, Kalmar K, Victor JD, Baker K, Gerber M, et al. Behavioural improvements with thalamic stimulation after severe traumatic brain injury. Nature. 2007 Aug;448(7153):600–3.
3. Fins JJ, Wright MS, Giacino JT, Henderson J, Schiff ND. In Pursuit of Agency Ex Machina: Expanding the Map in Severe Brain Injury. AJOB Neurosci. 2021;12(2–3):200–2.
4. Edlow BL, Claassen J, Schiff ND, Greer DM. Recovery from disorders of consciousness: mechanisms, prognosis and emerging therapies. Nat Rev Neurol. 2020 Dec 14;1–22.

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