Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Panes em nossa memória criam avenidas para as fake news

Aprendemos mais facilmente informações concordantes com nossos conhecimentos estabelecidos ou nossas crenças

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Comecemos com um exercício mental. Lembre-se de uma conversa em que você e amigos recordavam de acontecimentos antigos. Retome um momento de discordância, quando os conhecidos confrontavam versões diferentes sobre um fato qualquer. Se tudo transcorreu honestamente, você já está se lembrando, na medida em que a discussão seguia, uma nova narrativa, aos poucos, tomou forma. Enfim, uma versão atualizada contendo elementos dos enredos anteriores, associadas a novos dados recordados no calor da prosa. Aqui dou um exemplo de convergência de recordações, um processo dinâmico de reconstrução de memórias.

Um diálogo como este só é possível por causa da fluidez de nossa memória. Esta maleabilidade atende a um cérebro limitado, incapaz de fixar todas as informações. Entretanto, a memória humana transcende este obstáculo e impõe-se como grande força adaptativa para nossa sobrevivência.

O processo de consolidação de aprendizado é todo dinâmico. Primeiro, as memórias são codificadas e armazenadas em uma específica região cerebral e seus arredores, o hipocampo. Esses locais unem as informações que constituem a memória —o que ocorreu, com quem, quando e onde. A memória recém-codificada é rica em detalhes e seus componentes se interconectam harmonicamente.

Feixes brancos separados formam algo semelhante ao contorno de um cérebro
Obra de arte de Katherine Dowson chamada "Memory of a Brain Malformation", durante exibição na Wellcome Collection, em Londres, em 2012 - Chris Helgren/Reuters

Com o passar do tempo, a lembrança perde sua riqueza, a recordação se torna mais narrativa, menos dependentes dos hipocampos. Nessa etapa, as memórias ocupam difusamente áreas cerebrais. Será possível recordar uma determinada particularidade de um evento passado, apenas se suas reminiscências estiverem ainda guardadas no hipocampo. Para a nossa compreensão do presente a recordação de detalhes de eventos recentes é mais relevante do que relembrar minúcias antigas.

Também nem é tão útil se recordar dos mínimos aspectos de um único episódio, mas, sim, dos padrões que se repetem em acontecimentos distintos. Nossos sistemas de memória fazem as recordações dos pormenores cederem para generalizações. Lembramos do que é importante e repetitivo, enquanto esquecemos o irrelevante. Somamos as experiências passadas, para predizer o que ocorrerá. As novidades são armazenadas em esquemas de memórias já estabelecidos, ao invés de serem estocadas de forma independente.

Porém, se usamos muito um esquema de memória, o cérebro passa a referi-lo frequentemente. Dessa forma, novos conhecimentos serão associados a esse e não a outros possivelmente mais adequados. Um esquema preponderante pode dominar todo o mecanismo de consolidação do aprendizado.

Isso faz que aprendamos mais facilmente as informações concordantes com nossos conhecimentos estabelecidos ou com nossas crenças, já arraigadas. Mas também traz o risco de transformarmos qualquer dado em prova afirmativa de nossas convicções.

Informações incompletas ou erradas podem virar a pista enganosa para o cérebro criar falsas memórias, enquanto rememoramos situações antigas e organizamos nossas lembranças de forma desastrada. Uma falsa memória surge graças à natureza reconstrutiva dos mecanismos mentais de recordações, especialmente quando recordamos enquanto aprendemos algo.

Um exemplo clássico: um grande número de pessoas se surpreendeu com a morte de Nelson Mandela em 2013. Para elas, o líder havia morrido décadas atrás, quando ainda estava na prisão. Essas pessoas diziam se recordar nitidamente de cenas televisionadas do funeral. Provavelmente essas falsas memórias se consolidaram durante conversas despretensiosas fundidas às recordações da morte de outro ativista sul-africano, Steve Biko.

A difusão de desinformação, como ocorre em sites de notícias falsas, tem o potencial de distorcer memórias e, portanto, desvirtuar a compreensão da história. Factoides extensamente repetidos tendem a parecer confiáveis, principalmente quando direcionados a grupos de pessoas que pensam de forma semelhante.

Uma informação enganosa, quando reafirma convicções e aplaca dúvidas, fortalece a coesão desses grupos ao promover a convergência de memórias. A convergência de memória nem sempre visa a versão mais acurada. Sua prioridade é trazer conformidade para o conjunto de pessoas.

Talvez eu tenha implantado uma falsa memória em você. Pois é possível que você nunca tenha passado por uma conversa como a retratada no primeiro parágrafo e, mesmo assim, teve a lembrança. Mas, se de fato você teve uma conversa parecida, o que garante que a última versão para o fato recordado era de fato a mais precisa?

Tão vulneráveis aos erros, devemos checar as informações e não validar opiniões assentadas em vácuo.

Referências:
1. How Facebook, fake news and friends are warping your memory | Nature [Internet]. [cited 2021 Dec 9]. Available from: https://www.nature.com/articles/543168a

2. How to optimize knowledge construction in the brain | npj Science of Learning [Internet]. [cited 2021 Dec 9]. Available from: https://www.nature.com/articles/s41539-020-0064-y


3. Murphy G, Murray E, Gough D. Attitudes towards feminism predict susceptibility to feminism-related fake news. Appl Cogn Psychol. 2021;35(5):1182–92.

4. Greene CM, Murphy G. Quantifying the effects of fake news on behavior: Evidence from a study of COVID-19 misinformation. J Exp Psychol Appl. 2021;No Pagination Specified-No Pagination Specified.


5. Josselyn SA, Tonegawa S. Memory engrams: Recalling the past and imagining the future. Science. 2020 Jan 3;367(6473):eaaw4325.

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