Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

O cérebro humano é racional, sim; o livre-arbítrio existe

A iniciação cerebral de um ato voluntário espontâneo começa inconscientemente

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O fisiologista Benjamin Libet desejava entender como o cérebro comanda os movimentos corporais. Em 1983, recrutou voluntários para uma pesquisa e os orientou a fletir os pulsos ou mover os dedos das mãos, sempre que desejassem. Os participantes estavam com eletrodos no couro cabeludo, desta forma, as atividades cerebrais eram continuamente monitoradas. Deveriam olhar a tela de um computador que exibia um ponto contornando um aro de relógio. Tão logo sentissem vontade de se mover, deveriam registrar a exata posição ocupada pelo ponto.

Ao analisar os dados, uma surpresa, o cientista descobriu que o cérebro se arrumava para executar o movimento antes de existir o desejo consciente para tal. A conclusão do pesquisador: a iniciação cerebral de um ato voluntário espontâneo começa inconscientemente. Alguns técnicos acharam que estava aí a prova da inexistência do livre-arbítrio.

Entretanto, o próprio Libet optou por não concordar com esta premissa. Ele argumentava que seria possível um veto consciente que aborta ações iniciadas espontaneamente. E continuou: nós, humanos, podemos agir com independência, liberdade de escolhas e, existem evidências às vistas de qualquer um, de que a consciência pode controlar alguns processos cerebrais.

Cérebro humano - Adobe Stock

A despeito destas advertências, o neurocientista já não controlava mais os desdobramentos de seu experimento. Os conceitos de que o cérebro decide antes do Eu decidir e de que a consciência é um subproduto e, ao mesmo tempo, um fantoche de mecanismos cerebrais instintivos, já haviam pulado as fronteiras laboratoriais.

Estas ideias foram cooptadas por uma neurociência folclórica, mas capaz de influenciar pensadores proeminentes. Como bem lembra o psicólogo John Kihlstrom da Universidade da Califórnia, quando cita a passagem do livro Homo Deus, escrita pelo historiador e escritor Yuval Harari, autor de "Sapiens": "a ciência acaba com o liberalismo, ao argumentar que a liberdade individual é apenas um conto fictício, inventado por um conjunto de algoritmos bioquímicos".

E também quando menciona o psicólogo Daniel Wegner, que na obra "A Ilusão da Vontade Consciente" escreveu: "o cérebro cria tanto a ação como o pensamento, mas deixa a pessoa a inferir que o pensamento criou o movimento". Pesquise no YouTube, em buscadores de jornais, verá que o experimento de Benjamin Libet é pop.

Mas cá entre nós, não parece um exagero generalizar que não há livre arbítrio a partir de estudo de gestos tão triviais como o balançar de dedos ou pulsos? Ora, movimentos sem propósito são bem diferentes de ações complicadas em contextos complexos.

Lembrem-se também, em 1983, a tecnologia para investigar o cérebro engatinhava. Quarenta anos se passaram e inovações foram incorporadas às neurociências. Fato que criou espaços para novos experimentos, mais robustos, revisarem adequadamente a experiência do ponto no relógio. Cientistas notaram, então, que a intenção de se mover surge antes da atividade neural, aquela considerada por Libet como a preparatória para o movimento.

Mas há uma cereja no bolo, a descoberta do pesquisador em neurotecnologia Kramay Patel, da Universidade de Toronto. Ele demonstrou como a volição humana pode modificar a atividade de um único neurônio cerebral. Em uma de suas investigações científicas, pacientes foram instruídos a mover verticalmente um quadrado vermelho exibido na tela de um computador, por meio de comandos mentais. A posição do quadrado dependia exclusivamente da atividade elétrica de um único neurônio cerebral, ligado diretamente a um eletrodo que fora locado cirurgicamente.

Os participantes não foram instruídos como moveriam o polígono rubro, mas conseguiram aprender sozinhos. Assim modulavam a atividade do neurônio para fazer o quadrado subir ou descer. Uma prova de que a consciência pode controlar alguns processos cerebrais, de que a razão, pode comandar o cérebro.

Patel não deseja provar se livre arbítrio existe ou não. Em vez disso, preza em desenvolver a interface cérebro máquina, matéria mais simples do que dizer se a razão nos move, ou se, olhando de perto, somos meras bestas trajadas de sofisticação superficial. Espero que seu experimento ajude a desenvolver novas terapias, mas também que pule as fronteiras laboratoriais e torne-se um tema para neurociência folclórica.

Referências

1. Libet B, Wright EW, Gleason CA. Preparation- or intention-to-act, in relation to pre-event potentials recorded at the vertex. Electroencephalogr Clin Neurophysiol. 1983 Oct 1;56(4):367–72; 2. Neafsey EJ. Conscious intention and human action: Re­view of the rise and fall of the readiness potential and Libet’s clock. Conscious Cogn. 2021 Sep 1;94:103171; 3. Rubin DB, Paulk AC. Neuron, control thyself! Brain. 2021 Dec 1;144(12):3550–1; 4. Patel K, Katz CN, Kalia SK, Popovic MR, Valiante TA. Volitional control of individual neurons in the human brain. Brain. 2021 Dec 1;144(12):3651–63; 5. Kihlstrom JF. Time to lay the Libet experiment to rest: Commentary on Papanicolaou (2017). Psychol Conscious Theory Res Pract. 2017;4(3):324–9

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