Há momentos em que o Brasil parece promissor.
Ao permitir a alteração do prenome e do sexo da pessoa no registro civil, independentemente da realização de cirurgia de “transgenitalização” ou tratamentos hormonais, o Supremo Tribunal Federal chancela um marco progressista que beneficiará minorias e iluminará a convivência social.
É como se dois países coexistissem em um mesmo território. Apesar da desigualdade, da marginalização, dos tiroteios, das balas perdidas, do homicídio de moradores e policiais, da falta de saneamento básico, da corrupção à esquerda e à direita e do próprio desgoverno do STF, há espaço para a disseminação de valores civilizatórios.
A decisão é unânime em relação ao direito de retificar o prenome e o sexo no registro civil. A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) foi movida pela Procuradoria-Geral da República, a pedido de
entidades militantes, em 2009.
Se a tese do ministro Marco Aurélio prevalecesse, a mudança dependeria de autorização judicial e dos mesmos requisitos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina para a cirurgia: idade mínima de 21 anos, diagnóstico por equipe multidisciplinar (psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social) e dois anos de acompanhamento.
Por maioria de votos, venceu a visão menos burocrática de Edson Fachin, responsável pela redação do acórdão. A real extensão da decisão depende do seu teor. São diversas implicações jurídicas.
Como lembra o colunista Hélio Schwartsman, o homem que retificar o sexo do nascimento beneficia-se da aposentadoria com a idade estabelecida para a mulher (60 anos)? E a situação inversa, da mulher que retificar o sexo de nascimento só tem direito a se aposentar aos 65 anos, como homens? A alteração de registro será aceita em qualquer instância do poder público, inclusive nas Forças Armadas?
Um dos temas mais delicados envolve o local de cumprimento da pena. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, em despacho monocrático, determinou a remoção de duas travestis para presídio feminino. De fato, são vítimas de violência adicional e de profunda intolerância em ambientes prisionais.
Alguns países já estão enfrentando a situação. O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, afirmou em fevereiro que o problema ainda não estava em seu “radar”, mas que tomará as providências necessárias para corrigir a distorção decorrente do encarceramento que não leva em conta a identidade de gênero, qualificado de tortura.
No Reino Unido, controvérsias ideológicas já mobilizam as atenções. Martin Ponting, condenado a prisão perpétua pelo estupro de duas garotas em 1995, realizou cirurgia e alterou o nome: é Jessica Winfield. Em março de 2017, ela foi transferida para prisão feminina e em setembro submetida a isolamento em virtude de abordagens sexuais indesejadas (“unwanted advances”).
O site Trans Crime UK monitora reportagens de crimes cometidos por mulheres trans. Não pretende estimular o preconceito, mas lembra que a questão de gênero é essencial para a compreensão da criminalidade sexual e violenta (de fato, homens cometem mais crimes que mulheres) e que este fator se manteria inalterado quando homens adotam identidade feminina.
lfcarvalhofilho@uol.com.br
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.